Luto perinatal: o comovente relato da mãe cujo bebê viveu apenas 53 horas
Por MSN
Gil Ramos, de 41 anos, trocou a profissão de advogada (com carteira assinada, em um escritório, com horário fixo e salário estável) pela de doula. Mas ela não é uma doula como qualquer outra. Além de ser consultora de amamentação e oferecer preparação e assistência às gestantes no parto e no pós-parto, atende famílias que passam pelo luto por perdas perinatais. Ela também oferece cursos de formação ensinando outras doulas a fazerem o mesmo.
Ao vê-la ajudando tantas mães e pais dilacerados, mal dá para imaginar que, há apenas quatro anos, era Gil quem lidava com um dos momentos mais difíceis de sua vida: a perda do quarto filho, Theodoro, que nasceu prematuro e viveu apenas 53 horas.
Bem antes disso, em maio de 2014, ela engravidou pela primeira vez e, algumas semanas depois, teve um sangramento. Como tentou falar com a obstetra e não conseguiu, foi para a maternidade. A médica que a atendeu foi curta e grossa. “Não tem embrião aí, agora é só você esperar sair”, disse. Arrasada, voltou para casa e, em 31 de maio, teve sua primeira perda gestacional, no banheiro, com aproximadamente 8 semanas.
“Na época, só me lembro de sentir a maior vergonha do mundo e de ouvir frases como ‘logo você tem outro’, ‘ainda bem que foi no comecinho’ e ‘você tem que superar’”, conta. Depois disso, engravidou novamente e, em 2015, nasceu a pequena Valentina, hoje com 8 anos, em um parto normal. “Foi lindo e potente”, resume.
Três anos depois, Gil e seu companheiro decidiram que era hora de aumentar a família e começaram a tentar uma nova gestação. “Nunca pensei que passaria novamente por um aborto, mas aconteceu”, diz. “Fizemos o primeiro ultrassom e ouvimos o tão sonhado ‘tum tum’ [dos batimentos cardíacos do bebê]. Saímos felizes da vida. Até que, por volta de 11 semanas, tive um sangramento”, lembra. A decisão naquele momento foi ir ao pronto-socorro. “Mãe sempre sabe. Isso é algo que eu aprendi com todas as perdas. A gente sabe quando há algo errado. Só temos de aprender a confiar e seguir nossa intuição”, reflete.
Gil foi encaminhada para o ultrassom. E aí, o sonho virou pesadelo. O “tum tum” havia parado. “O coraçãozinho não batia mais. Só nos restava aguardar o aborto ou fazer a curetagem”. A mãe tentou esperar o aborto espontâneo, porém não aconteceu. “Tive de me submeter a uma curetagem de emergência. A causa da perda nunca foi investigada e foi tida como fatalidade”, conta.
Apesar de todas as dores, Gil não desistiu do desejo de aumentar a família. Então, no primeiro dia de 2019, como um presente de Ano Novo, descobriu a quarta gestação, que veio acompanhada de um misto de sentimentos. ”Por mais que eu tentasse relaxar e aproveitar a gravidez, não conseguia me desvencilhar do medo que tinha de perder também aquele filho”, diz ela, que fez até terapia para tentar superar esse receio todo – sem muito sucesso. “Nada tirava aquele medo do meu coração, mas eu tentava relaxar. Era o Theodoro. O meu Theodoro”, reforça.
A gravidez ia bem e, apesar de toda a insegurança, as primeiras 12 semanas mais críticas foram ultrapassadas. A família escolheu a equipe médica, que acompanhava tudo de perto. Então, com 21 semanas, uma bandeira vermelha: em um exame de ultrassom de rotina, no pré-natal, foi constatado que Theodoro apresentava uma restrição de crescimento uterino, ou seja, não se desenvolvia conforme o esperado. “Minha pressão começou a subir e a gestação passou a ser de alto risco”, lembra Gil.
Com 23 semanas, um novo ultrassom mostrou que o ganho de peso havia tido uma piora relevante. Os médicos chegaram a cogitar a interrupção da gestação. “Optamos por ouvir um obstetra especialista em alto risco, que nos acolheu e nos colocou a par da realidade das dificuldades e dos riscos daquela gravidez”, conta a mãe, que seguiu lutando pelo filho.
A partir daí, foram baterias e baterias de exames semanais. Na 27ª semana, alterações significativas no fluxo das artérias umbilical e uterina levaram a gestante a ser internada, para um acompanhamento mais próximo, com monitoramento diário, ultrassom com doppler, perfil biofísico e cardiotocografia. Os exames serviam para avaliar constantemente o fluxo das trocas sanguíneas entre mãe e bebê, o crescimento e ganho de peso e os sinais vitais. “Depois de três dias de internação, houve alteração no ducto venoso, que causou sofrimento fetal”, lembra a doula. “Theodoro precisou nascer em 1 de julho de 2019, em uma cesariana de emergência, com 28 semanas de gestação. Ele media 35 centímetros e pesava apenas 760 gramas”, lembra.
Foram momentos rápidos e muito intensos. “Ele chorou assim que nasceu, com muita força. Era como se me falasse: ‘Mamãe, estou aqui, vivo. Nós conseguimos, somos muito corajosos!’”, diz Gil. “Naquela hora, senti felicidade e gratidão por ele ter nascido com vida e também por ter tido a oportunidade de gestá-lo, de vê-lo, de senti-lo”, recorda.
De imediato, não foi possível levar o bebê ao colo da mãe, como ela sempre sonhou. “Não pudemos esperar o cordão parar de pulsar. Ele não mamou na primeira hora de vida. Não tivemos o contato pele a pele. O máximo que pude fazer foi dar um rápido beijinho registrado em uma foto, antes que ele fosse encaminhado para a UTI Neonatal. Minha felicidade durou 53 horas, que foi o quanto ele viveu”, relata.
Theodoro partiu em 3 de julho. “Pudemos pegá-lo no colo, ainda com vida. Pudemos beijá-lo, acariciá-lo e libertá-lo de todo e qualquer sofrimento – se é que temos esse poder. No colo do pai, Theodoro se foi. E, com ele, uma parte de mim”, diz Gil. “O que ninguém conta é que, quando um filho morre, independentemente de ser lá no comecinho ou depois de horas, meses, anos, a gente também morre um pouquinho. Os dias passam a ficar cinzentos e é preciso muita força de vontade para seguir adiante”, descreve.
Com a partida do pequeno, Gil parou para pensar sobre a brevidade da vida e prometeu a si mesma que, dali em diante, faria o que gostava para ser feliz. ”Theodoro me tornou corajosa. Passei a frequentar um grupo de apoio ao luto e conheci mães enlutadas”, conta. Então, ela começou, aos poucos, o processo de ressignificar sua dor, transformando-a, de alguma forma, em acolhimento para quem passava pela mesma situação. Fez um curso de doulagem e de consultoria em aleitamento materno.
“Meu foco era acompanhar mães enlutadas, durante a perda, o parto, no pós-parto e em novas gestações”, afirma. Gil criou um perfil no Instagram para se conectar a outras mulheres (@aindaluto) e contou sua história. “Chorei junto de muitas delas. Acompanhei tantas outras em processos de despedidas e chegadas de bebês arco-íris [crianças que nascem após uma perda gestacional ou perinatal]. Passei a facilitar rodas presenciais de apoio ao luto, com uma psicóloga parceira, que logo se tornaram online por conta da pandemia. Theodoro me presenteou com a coragem que me faltava”, resume.
“Muitas pessoas pensam que eu ajudo essas famílias, mas, na verdade, sou ajudada por elas o tempo todo. Olhar nos olhos, ser ouvido, ser colo, ser abraço e acolhimento: tudo isso é uma cura diária para o meu processo de luto”, define a doula. “A verdade é que o luto não é um processo linear. É uma montanha russa de sentimentos. Só entende quem vive”.
Luto perinatal: falta acolhimento
A morte e as perdas, ou seja, os desfechos que ninguém espera ou deseja para uma gestação, são uma realidade desde que o mundo é mundo. Ainda assim, não há preparo suficiente para lidar com tanta dor. Mas será que existe uma maneira de suavizar essa jornada tão complexa e solitária?
“Falamos tanto em humanização no parto e no nascimento, mas quando uma mãe perde um bebê, ninguém sabe acolher”, afirma Gil. “São inúmeros os relatos de profissionais que viram as costas, somem, não atendem ligações. São inúmeros os relatos de mães que foram tratadas com frieza em uma UTI Neonatal ou que receberam a notícia da morte de seus filhos sem a menor empatia. A verdade é que ninguém quer lidar com a morte, só que morte e vida caminham lado a lado quando estamos lidando com nascimento. Falta preparo, falta empatia, faltam políticas públicas decentes, faltam protocolos em instituições públicas e privadas. Falta humanização na morte”, opina ela.
Não dá para fechar os olhos
Para a psicóloga e pesquisadora da área Heloísa Salgado, co-autora do livro Como Lidar: Luto Perinatal – Acolhimento em Situações de Perda Gestacional e Neonatal (Editora Ema Livros) junto da obstetra Carla Polido, jogar luz sobre o tema é fundamental, não apenas quando a perda já aconteceu, mas antes. No entanto, essa necessidade esbarra em uma barreira cultural. “Quando passamos por uma cirurgia, por exemplo, é preciso ler e assinar um documento com uma lista de possíveis efeitos, possibilidades de desfechos ruins, que vão desde complicações, sequelas à morte. No pré-natal, fingimos que isso não existe”, afirma. “Aqui no Brasil, minimizamos as situações de luto. Achamos que o ideal é virar a página rápido, voltar logo para o trabalho, que o sofrimento inerente à perda é ruim”, destaca.
Além disso, ela lembra que há a questão religiosa e espiritual. “Dizem que a pessoa não pode sofrer, porque isso traria algo negativo para quem morreu, como se não facilitasse a ‘passagem’ dela. É muito forte em nossa cultura a ideia de que falar de morte ‘chama’ a morte”, aponta. “Qualquer trabalho com luto, sejam cuidados paliativos ou protocolo de luto perinatal, passa, primeiro, por uma mudança de paradigma, uma mudança cultural, para fazer com que as pessoas entendam que não é mórbido e não é ruim falar de morte. Aliás, nascer e viver são as duas únicas certezas que temos, mas evitamos ou ignoramos isso”, explica.
Segundo ela, esses são pontos que precisam ser conhecidos e trazidos à tona pelos profissionais que estão na linha de frente, lidando com as famílias. Por mais estranho que possa parecer, é importante que o obstetra, a parteira, a enfermeira ou quem mais fizer parte da equipe que está acompanhando a gestação lembre-se dessas possibilidades na hora de montar um plano de parto, por exemplo. “Na hora ‘H’, a pessoa não vai saber o que fazer, então, precisa ser muito bem conduzida. Muitas vezes, isso não acontece e ela é levada a tomar decisões a partir dos valores e das crenças de quem está oferecendo cuidado, e isso não é protocolo de luto perinatal. Protocolo de luto perinatal é oferecer tempo, oportunidade, respeito às diferenças e singularidades de cada família, de cada gestante”, resume.
Oportunidade, privacidade e tempo
Esses três pontos são fundamentais no estabelecimento de um protocolo para lidar com as perdas neonatais, de acordo com a especialista. Heloísa explica que é preciso preparar a família e entender o que ela gostaria de fazer diante de uma situação dessas. Com isso, é possível elaborar um “plano de luto”. É essencial conversar para oferecer as melhores oportunidades possíveis: aquela família gostaria de ver ou não o bebê? Eles gostariam de segurá-lo? De batizar a criança, de acordo com cada crença?
“Podemos providenciar uma caixa de memórias, podemos preparar a pessoa sobre como ela será informada do que pode acontecer. É preciso falar sobre isso e oferecer essa oportunidade. É necessário que as equipes comecem a levantar essas questões para tentar promover uma mudança cultural”, sugere.
Com profissionais capacitados em protocolos adequados de luto perinatal, fica mais fácil entender quais são as oportunidades e preparar as instituições, oferecendo também a privacidade para essas famílias. “Muitos locais, até hoje, não separam mulheres que viveram uma perda ou que estão sofrendo com bebês na UTI. Então, ao lado de uma mãe que perdeu seu filho, há bebês chorando, grávidas passando para cima e para baixo… É uma realidade muito cruel. Tomando como referência o que muitas mães me relatam, é uma tortura”, compara. Por isso, é tão importante ter um protocolo e segui-lo, para que os profissionais possam se organizar melhor.
O tempo para processar o acontecimento também é fundamental, principalmente, porque, sabemos, é algo que não volta. “Se você oferecer a possibilidade de mostrar o bebê para uma mulher, quando ele acaba de morrer, é muito provável que ela recuse. Ela vai dizer que aquele não é o bebê dela, que o dela estava vivo, que não quer guardar essa memória. Se tomarmos essa resposta como final, vamos tirar dessa mulher a oportunidade de estar com seu filho, de criar vínculos, de conviver com ele, de fazer coisas que ela gostaria de fazer, como ela programou, planejou, e não vai conseguir fazer depois que tiver alta, porque o bebê vai ser enterrado, cremado. Ela não vai poder se despedir do filho. Para isso, é preciso tempo. E essa mulher está em choque, traumatizada. Então, é muito comum ela dar essa resposta. Por isso, é essencial dar tempo para que essa família consiga entender e processar o que está acontecendo. Além disso, a mãe está se recuperando do nascimento, que pode ter sido uma cirurgia, um parto difícil. Os hormônios estão oscilando”, explica. Assim, dependendo do caso, a família pode guardar memórias, pegar o bebê no colo, chamar outras pessoas para visitar, ninar, trocar de roupa… “Enfim, tempo de qualidade para criar vínculos”, resume a psicóloga.
A especialista conta que, inclusive, em outros países, onde os protocolos e os debates em torno do assunto são mais avançados, como no Reino Unido (onde ela participou de um congresso recente sobre o tema), há a possibilidade de as famílias levarem o bebê para casa, durante um período de 72 horas, em um berço refrigerado, para poderem ter essas experiências em seus lares. “Essa não é a realidade hoje do Brasil, mas pode ser que seja, no futuro”, vislumbra. “É uma oportunidade para a família poder ter o bebê nos espaços que foram criados para ele – o que, na nossa cultura, é algo surreal, mórbido, esquisito. Por isso, sempre digo que é necessário vencer a questão cultural antes. E isso leva tempo. No Reino Unido, onde esses protocolos são bem estabelecidos, por exemplo, conversei com profissionais que me disseram que, aqui, estamos onde eles estavam há 20 anos. Então, é possível mudar. Só não podemos deixar de falar, de informar e de cobrar”, argumenta.
Heloísa lembra que nosso país é muito grande e muito desigual. “O protocolo que há nem é oficial. As práticas são baseadas nas necessidades da equipe, dos funcionários, dos setores”, diz. “Então, o tempo para enviar o bebê para o mortuário é o tempo que a administração define, não é o tempo que o profissional acha importante ou que a família deseja. São pessoas da área administrativa que estabeleceram isso”, explica.
A profissional ainda dá alguns exemplos: “Em algumas instituições, quando as famílias perguntam e pedem para ver o bebê que morreu, recebem a criança dentro de sacos plásticos. Ou então ficam embaladas, feito uma encomenda, no lençol da maternidade. Temos também profissionais que estão tentando fazer diferente. É uma discussão muito recente”. E que precisa de conversa e de avanços.
Por enquanto, segundo a psicóloga, a melhor forma de acolher uma mãe ou uma família que vive um luto perinatal é ser escuta e oferecer apoio, tanto emocional, quanto prático. “Nada do que a gente possa falar vai aliviar o sofrimento. Isso serve para qualquer tipo de luto. Então, temos mais é que escutar, validar os sentimentos e o sofrimento”, recomenda. Uma família que passa por isso também precisa de suporte em tarefas simples. “Pensando no ponto de vista da mulher, que está se recuperando do parto, ela está muito vulnerável, com dificuldades para seguir as questões corriqueiras da vida, como ir ao supermercado, cuidar da casa, cuidar do filho mais velho, do animal de estimação, de trabalhar, fazer sua comida, pagar contas…”, lembra. A rede de apoio é essencial para ajudar essa família e, sobretudo, essa mãe a sobreviver a esse período – que pode ser longo e tenebroso.
Seja apoio, seja ouvidos. Fale menos e escute mais. É fundamental que essas mães saibam que não estão sozinhas.