O processo de luto: e quando morre um animal de companhia?
Por Carolina Botelho Pinto e Inês M. Borges para SIC Notícias (Portugal)
Não, não é “só” um animal e a sua morte pode mesmo gerar emoções intensas e deixar marcas duradouras (nos donos e nos veterinários). Desmistificamos o estigma e explicamos o processo com a ajuda do psicólogo Mauro Paulino e do médico veterinário André Santos.
Tristeza, raiva, culpabilização e um sofrimento “equiparado ao da perda de um familiar”. Todas estas emoções são “normais” quando morre um animal de estimação, mas é preciso estar atento a sinais preocupantes. Falamos de um episódio que pode até deixar marcas a longo prazo (e não apenas nos donos).
Para perceber melhor este processo de luto, que impacto pode ter na vida dos donos e na dos profissionais que acompanham estes animais, a SIC Notícias falou com o psicólogo Mauro Paulino e com o médico veterinário André Santos.
A difícil decisão de dizer adeus
“Afinal, quando é o momento certo? Será que devíamos ter esperado ou podíamos até ter tomado a decisão mais cedo para o animal não sofrer?”.
Questões como esta chegam frequentemente às ‘mãos’ do psicólogo Mauro Paulino. É por isso, explica, que o acompanhamento do veterinário e o suporte emocional são “essenciais neste processo de tomada de decisão”.
Um acompanhamento que pode fazer a diferença “entre a dúvida ou, por outro lado, perceber que foi um ato de amor e de compaixão para com um animal que estava a sofrer”.
O médico veterinário André Santos, do Hospital Veterinário do Restelo, acrescenta que o objetivo é que os donos “saiam do hospital com a consciencialização de que foi a melhor decisão para o animal”.
Como explicar às crianças?
A morte de um animal de estimação é um episódio marcante na vida familiar e, por isso, não deve ser escondido das crianças. No caso da eutanásia, estas podem até ser envolvidas no processo, sublinha Mauro Paulino.
“Se for caso de morte por eutanásia, em que a criança já possui alguma maturidade emocional, poderá partilhar-se essa decisão e envolvê-la na explicação do processo de tomada de decisão para que a criança sinta, de certa forma, ter algum autocontrolo sobre o sucedido e não seja surpreendida com uma decisão que é muito pesada do ponto de vista emocional”, afirma.
Em entrevista à SIC Notícias, o veterinário André Santos revela um episódio que o marcou particularmente, quando, há pouco tempo, “adormeceu” uma gata que acompanhava há ano e meio.
“Fiquei muito sensibilizado porque a filha dos donos, de sete anos, esteve lá com a gatinha até se despedirem. Depois enviaram-me um e-mail a dizer que queriam que a filha estivesse presente porque a morte faz parte da vida. Deixaram-na processar tudo, numa bolha de amor”, conta.
Assistir ou não ao momento da eutanásia?
A decisão é “muito pessoal” e “qualquer uma é válida”, explica André Santos. No entanto, o médico veterinário diz acreditar que os animais gostam de ter os donos com eles no momento da despedida.
“Mas há muitas pessoas que não querem guardar essa recordação, o que respeito e compreendo”, afirma.
E quando a morte é trágica e inesperada?
Sabemos que as circunstâncias da morte têm influência no processo de luto. Por essa razão, situações repentinas, inesperadas ou trágicas podem estar associadas a “reações mais problemáticas”, sublinha Mauro Paulino.
“Pode até surgir aquilo a que chamamos de luto complicado (…) perturbação de stress pós-traumático, sentimentos de raiva, culpa e zanga”, esclarece.
Sentimentos que podem gerar questões repetitivas como: “o que é que eu devia ter feito? Porque é que não consegui antecipar e prevenir?”.
“A raiva e a culpa são dois dos vetores que surgem muito em consulta quando alguém perde um animal de companhia”.
Quando pedir ajuda?
E se há sentimentos e emoções “normais” num processo de luto, quando é que, afinal, se deve pedir ajuda? Uma das questões fundamentais é perceber que impacto esta morte está a ter no dia a dia da pessoa e há quanto tempo dura esse impacto, explica o psicólogo Mauro Paulino.
“É normal as pessoas sentirem-se tristes. É normal as pessoas estarem isoladas e é compreensível. Mas quando há um impacto na dinâmica do dia a dia familiar, social, laboral, perante um período mais prolongado, isso é um indicador de que é necessário ajuda especializada”, esclarece.
Não é só um animal
A perda de um animal de companhia “pode ser equiparada ao sofrimento pela perda de um familiar ou ente querido”, afirma o psicólogo, e isso “é muitas vezes acompanhado de um estigma social de as pessoas acharem que foi só um animal”.
“Mas para a pessoa que perdeu o cão ou gato que acompanhou durante anos e que tem um papel afetivo naquela família, naquele circuito familiar, acaba por ser mais pesado. (…) Isto leva à desvalorização deste luto, que costuma estar privado de direitos”.
“A pessoa quase que se sente mal em assumir o seu sofrimento”, diz Mauro Paulino.
O luto feito ainda em vida
O processo de luto não acontece só depois da morte de um animal. Há casos em que este ainda é feito em vida, como por exemplo quando um idoso é hospitalizado ou colocado num lar para onde não pode levar o seu animal.
Situações onde é preciso também estar atento, já que podem gerar “reações emocionais muito significativas”, destaca o psicólogo.
“O trabalho com pessoas idosas exige uma compreensão diferente, pela relação, que à partida era mais longa, e porque o animal às vezes era a única fonte de companhia (…)”.
Quando adotar novamente?
E depois da morte de um animal, quando adotar novamente? Não há uma resposta certa. Certo é que não deve ser uma decisão precipitada, já que pode dificultar o processo de luto pelo animal que partiu.
A adição de um novo membro à dinâmica familiar pode levar a comparações, provocando sofrimento ao dono e ao animal, que também sairá fragilizado por não conseguir criar uma ligação com o tutor.
“Precipitada é a palavra certa. Podemos até adotar um animal na semana seguinte a ter perdido outro, mas a decisão já vinha a ser pensada em família. [A questão] não é tanto se passaram dois dias ou se passou um mês. É mais o quanto é que essa decisão foi elaborada”, informa Mauro Paulino.
Até porque há estudos que mostram que a adoção de um animal após a perda tem tendência para reduzir os sintomas depressivos. A decisão deve, no entanto, ser “ponderada e devidamente avaliada”, acrescenta.
O lado negro da medicina veterinária
Mas não são só os donos que sofrem com a partida de um animal. A prática da eutanásia e ter que lidar com emoções negativas fazem dos veterinários dos profissionais com maior taxa de burnout e de suicídio.
Um estudo conduzido por duas investigadoras portuguesas concluiu que mais de metade dos médicos veterinários apresenta sintomas de ansiedade e depressão e que, destes, mais de 25% experiencia sintomas severos.
“Três em cada cinco veterinários pensam em abandonar a profissão. Quase que me emociona falar disto”, confessa à SIC Notícias o médico veterinário André Santos.
O mesmo estudo português acrescenta que o nível de comportamentos suicidas entre os médicos veterinários é “preocupante” e que mais de 25% reportaram práticas de automutilação.
Os veterinários “estão expostos a situações emocionalmente desencadeantes, ou seja, lidar com ver que mais um animal partiu e depois com as reações emocionais dos tutores, muitas vezes à frente dos próprios veterinários e às vezes até direcionada a tal raiva, a tal zanga, a tal culpa”, explica Mauro Paulino.
“Às vezes é uma gota que faz transbordar o copo. Não foi o caso mais grave, não foi o caso mais marcante, mas já estão tão exaustos que aquele caso foi o suficiente para causar ali uma maior ruptura”, acrescenta.
Em entrevista à SIC Notícias, o psicólogo sublinha ainda a importância da crescente consciencialização de que o luto pela perda de um animal de companhia é um processo “doloroso” e cujas reações devem ser “normalizadas”.
“Há a necessidade de se educar a sociedade e normalizar estas reacções de luto que, se não forem aceites, não forem respeitadas, vão gerar um maior sofrimento nas pessoas”.