Luto: ‘é preciso educar as crianças para a morte’, diz psicóloga
Por Camilo Hoshino Para Lunetas.com.br
“Meu pai virou uma estrela”. Este poderia ser o final de uma história de super-herói que, de repente, alcança a fama depois de uma grande batalha. Mas os enredos da vida real podem ser bem mais intrincados: essa é uma história sobre luto. Foi assim que o filho de cinco anos da gerente de marketing Fabiana Cunha falou sobre a morte do pai para os colegas da escola.
“Ele morreu num acidente aéreo”, explica Fabiana, na época, com um outro filho de quase dois anos. No momento da tragédia, a verdade prevaleceu e a mãe resolveu expor os fatos com carinho, mas sem fantasias. “Disse que a família seria diferente, que sempre teríamos ele (pai) na memória, mas que a partir dali as coisas iam funcionar de outro jeito”, relembra.
Para a psicóloga e coordenadora do Centro de Psicologia Maiêutica, Ana Lúcia Naletto, o ideal é mesmo que os adultos não afastem as crianças dos rituais relacionados à morte, para que elas comecem a entender desde cedo que as coisas terminam. “Assim como se educa um filho para viver em sociedade, ensinando que é preciso pedir desculpas ou pegar uma fila, também existe o ensino para a morte”, afirma.
Segundo ela, o tema pode ser trabalhado na escola ou se manifestar em algumas escolhas dos pais e das mães. “Um conselho é não comprar um peixe novo quando o outro morre ou trocar por outro animal”, sugere. Mas nem sempre há tempo de educar antes de uma perda maior.
Uma questão de perspectiva
Os adultos reagem de forma diferente diante dos acontecimentos. E isso não poderia ser de outra maneira no caso da morte.
“O luto é multifatorial, tem a ver com a idade, personalidade, como a família lida com as questões, a relação que se tem com a pessoa que faleceu, entre outros fatores”, explica Ana Lúcia Naletto.
De acordo com ela, de modo geral, as crianças menores de dez anos não compreendem bem a irreversibilidade, por isso podem apresentar uma reação sem sofrimento. Depois dos dez anos, a criança já pode ter reação semelhante à de um adulto.“A adolescência é uma etapa diferente, de externar as emoções. A morte afeta a onipotência, por isso eles tendem mais a negá-la” .
Na casa de Fabiana, o filho mais velho, muito apegado ao pai “super-herói”, ficou um ano e meio na terapia após o acidente. “Até que um dia ele se deu alta”, relata a mãe.
O mais novo, na época, não entendia direito o que estava acontecendo. Mas, quando chegou na fase de alfabetização e teve alguns empasses, Fabiana buscou ajuda da terapia. Logo apareceu a figura do pai. “A psicóloga trabalhou com fotos e desenhos no papel com altura do pai para que ele não fosse apenas uma imagem distante”, conta.
Fábulas do contexto escolar
A palavra “morte” nem sempre precisa carregar o peso daquilo que ela representa. E isso a turma da segunda série de uma instituição de ensino privada, em São Paulo, aprendeu na prática, há cerca de dez anos. As crianças, entre sete e oito anos, viveram um período extenso de luto escolar quando uma das colegas foi internada com leucemia. Durante meses de tratamento até seu falecimento, os alunos enfrentaram uma série de emoções.
“Alguns choraram, outros não entendiam o que estava acontecendo e outros já traziam experiências anteriores de casa, e simplesmente diziam que era preciso ‘enterrar o corpo’”, conta a professora e orientadora pedagógica Wandaly Costa, sobre o momento em que teve que dar a notícia da morte.
Depois disso, a professora, com o auxílio e orientação da psicóloga Ana Lúcia Naletto, incentivou a construção de alguns “rituais de despedida” para que as crianças vivenciassem o luto e falassem abertamente sobre a morte.
“Elas precisavam entender também que uma doença como a leucemia era diferente de uma dor de ouvido”, diz Wandaly
E cada um, à sua maneira, acabou elaborando uma história para o que aconteceu com a menina dali em diante. Ao mesmo tempo, a orientadora pedagógica reforça que, quando as crianças se apegam muito ao tema fora dos momentos de reflexão coletiva, pode ser necessário retirar a atenção delas do assunto, para entenderem que é preciso seguir a vida e continuar as atividades diárias na sala de aula, sem afetar o rendimento escolar.
“Era preciso ser verdadeira com eles, sem traumatizá-los e sem entrar em explicações religiosas, pois cada um possui suas próprias crenças”, relata a professora”
Sobre o que não dizemos: os tabus em torno do assunto
O contexto do ensino público apresenta cenários ainda mais complexos. Isso se agrava se casos não foram relacionados apenas a fatalidades, mas também a questões sociais. Thiago Augusto Divardim de Oliveira, de 31 anos, é professor de História no Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT), em Curitiba. Ele conta que, há alguns anos, a comunidade escolar viveu uma tragédia com o suicídio de um adolescente dentro da instituição.
“Eu me senti despreparado quando fiquei sabendo do caso e que entraria na sala de aula no dia seguinte. Optei por não entrar em detalhes, mas manifestar que os professores estavam à disposição para conversar, mesmo que eles não soubessem o que falar”, relata o professor.
Os dados do Mapa da Violência de 2017 mostram que ocorreram 2.898 suicídios de jovens entre 15 a 29 anos em 2014, dado que fica encoberto pelos números absolutos de 30 mil homicídios na mesma faixa etária. Mas isso significa que, em 12 anos, conforme demonstra o estudo, a taxa de 5,1 por mil habitantes (2002) subiu para 5,6 (2014), aumento de quase 10%.
As estatísticas ajudam a visualizar o inevitável: de uma forma ou outra, a comunidade escolar precisa encarar a existência e as consequências desses óbitos.
O professor Thiago Oliveira chama a atenção, no entanto, para a multiplicidade de fatores implicados nesses casos: a formação dos professores, disponibilidade de informações sobre o assunto, as condições materiais e intelectuais de trabalho e a própria convivência entre alunos e professores. “Em uma situação em que os professores precisam trabalhar em três, até quatro escolas para ter uma renda suficiente, quais seriam as possibilidades de um professor detectar esses sinais?”, questiona.
“Educar as crianças para a morte é educar para a finitude”.
Para ele, são muitos os desafios ao lidar com a questão da morte no ambiente escolar, mas é preciso maior preocupação do Estado, com investimentos em contratação e qualificação de profissionais no campo da educação pública. “Além de professores, as escolas precisam de profissionais do serviço social e da psicologia”, defende.
Arte e vida
Quando a vida for mesmo “severina”, encarar a morte pode exigir a ajuda da arte. E parece ser nela que os adultos encontram as fontes inspiradoras para apresentar o tema às crianças.
“A morte é um assunto que faz parte das curiosidades infantis”, afirma o escritor Ilan Brenman.
No caso do luto vivido pelas crianças da segunda série, foram meses de atividades lúdicas para que os profissionais de ensino pudessem elaborar a experiência com os alunos. Eles fizeram desenhos, rodas de conversas, leitura de livros e escreveram uma carta coletiva para os pais da colega que morreu. “As crianças queriam escrever poemas para ela”, conta a professora.
Nesse sentido, é inevitável que a literatura infantil acabe tratando de assuntos delicados ou considerados tabus.
“Eu sempre defendi uma literatura infantil que pudesse nomear de forma bem humorada e ‘brincante’ aquilo que temos medo de nomear”, diz Brenman.
O escritor é organizador do livro “Meu Filho Pato: E mais contos sobre aquilo de que ninguém quer falar”, que trata do tema da morte e do luto. Por isso, a literatura pode despertar outros olhares e atitudes sobre situações difíceis ou que parecem constrangedoras.
Morte é uma conversa para a vida toda
Em 2017, a história do “pai que virou estrela” completa dez anos. Mas todos os dias novas histórias são construídas no cotidiano das famílias.
Com 12 e 15 anos, os filhos de Fabiana encararam a nova composição familiar, viveram o luto e estão bem. “Eles sabem que o super-herói não será substituído no coração deles, mas o amor aumenta, então sempre cabe mais um”, afirma a mãe. Ela revela que os filhos aceitam e gostam do namorado atual.
“A morte vivida na infância é um assunto que precisa de maturidade e vai levar até a adolescência ou a vida adulta para ser bem compreendida”, de acordo com Ana Lúcia Naletto.
E, no fim, como explica a psicóloga, “educar as crianças para a morte é educar para a finitude”. Seja de uma vida, de uma ideia ou de um momento. E, em muitos casos, como no de Fabiana e de sua família, o fim passa a ser apenas mais um capítulo daquilo a que chamamos vida.
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