Um ano após início da pandemia, desconhecidos encontram consolo compartilhando seu luto
Por Nina Storchlic Para National Geographic Brasil
Um ano se passou desde que a OMS declarou a covid-19 como uma pandemia. Milhões de famílias estão tentando enfrentar as perdas para seguir em frente.
Pouco antes do Natal, Flor Betancourt foi ao neurologista para uma consulta de rotina. Ela não conseguiu deixar de contar que seu irmão mais novo havia morrido de covid-19 no primeiro semestre de 2020, e não foi possível se despedir dele por ligação ou mensagem. Desde o último dia 26 de abril, ela vem torturando a si mesma e a todos seus conhecidos com a mesma pergunta: por que Juan não ligou para ela do hospital nem atendeu suas ligações?
As duas pernas de Juan Vazquez foram amputadas devido a complicações do diabetes, praticamente impossibilitando sua locomoção. Da janela de seu apartamento térreo no Brooklyn, ele distribuía petiscos para cachorros e pegava as sacolas que seus vizinhos levavam para ele. Betancourt não sabe como seu irmão contraiu o novo coronavírus, mas antes de ser colocado na ambulância, ela conseguiu falar com ele por telefone: disse que o amava e o lembrou de pegar o carregador do celular. Vazquez não atendeu mais suas ligações e faleceu nove dias depois.
No consultório do neurologista, Betancourt soluçou, com um aperto no peito. “Quero lhe explicar uma coisa”, o médico a consolou. “Pacientes com covid-19 ficam hipóxicos. Eles ficam confusos porque o oxigênio não chega ao cérebro.” A autópsia concluiu que Vazquez morrera de hipóxia. Então algo mudou para Betancourt. Ele não ligou porque não conseguia pensar.
Ela se sentiu fisicamente extasiada: falou com um colega de trabalho próximo, depois com a mãe dela, contou ao marido e, depois, ao seu terapeuta. “A partir daí, eu sabia que poderia me livrar de 99% da dor”, afirmou ela. “Eu estava obcecada por ele não ter me ligado e não conseguia deixar isso para lá. E depois de saber o porquê pensei: ‘é isso — vida que segue’.”
A segunda “pandemia”
Um ano se passou desde que a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia, em 11 de março de 2020. Desde então, milhões de pessoas que perderam entes queridos em todo o mundo durante esse período estão buscando maneiras de se curar em meio ao cenário de uma segunda onda de infecções.
“As pessoas dizem que existe uma segunda pandemia, que é a ‘pandemia da perda’ ou a ‘pandemia do luto’”, conta a Dra. M. Katherine Shear, fundadora e diretora do Centro para Lutos Complicados da Universidade de Colúmbia. Um estudo de junho contabilizou uma média de nove parentes diretos enlutados por cada pessoa que morre de covid-19 apenas nos Estados Unidos. Com o número de mortos nos EUA agora ultrapassando meio milhão de pessoas, isso significa que mais de 4,5 milhões de norte-americanos estão sofrendo com a perda de algum familiar, sem contar outros milhões que perderam amigos, colegas e vizinhos.
No Brasil, o número de mortos passa de 273 mil. Pela primeira vez, o país vem registrando acima de 2 mil óbitos por dia, no que pode ser considerado o pior momento da pandemia por aqui. Quantas famílias estão devastadas com esse número trágico de perdas?
O “transtorno de luto prolongado” — que em breve será oficialmente incluído no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, livro referência da Associação Americana de Psiquiatria — deixa os enlutados com uma tristeza paralisante que afeta sua capacidade funcional e dura mais do que o normal.
O Centro para Lutos Complicados, nos EUA, nunca esteve tão movimentado. Shear o fundou há oito anos com a convicção de que alguns tipos de luto não respondem aos antidepressivos ou à psicoterapia tradicional. No tratamento desenvolvido por ela, os pacientes passam por sete etapas de cura — da aceitação à conexão pacífica com as memórias da pessoa falecida.
Shear e sua equipe passaram os meses de junho a agosto de 2020 organizando seminários on-line para médicos por intermédio do departamento de saúde mental da cidade de Nova York e também para profissionais na Noruega, no Reino Unido e na China. Eles planejam duplicar o número de workshops este ano, bem como criar uma versão virtual da terapia.
Segundo Shear, a covid-19 causou um aumento dramático nos lutos complicados. Mesmo sendo pesquisadora do luto, é difícil para ela compreender a magnitude do sofrimento em todo o país.
A solidariedade de desconhecidos
Em junho, antes da morte de seu pai, Rose Carmen Goldberg escreveu um artigo para o East Bay Times, um jornal local na Área da Baía de São Francisco, onde é professora de Direito na Universidade da Califórnia, em Berkeley. No artigo “Losing and Finding My Dad During the Coronavirus Pandemic” (Perdendo e encontrando meu pai durante a pandemia de covid-19, em tradução livre), ela descreveu como seu pai, Harold Jay Goldberg, foi para uma casa de repouso após sofrer um derrame e como foi observá-lo através das portas de vidro do quarto enquanto ele lutava para entender por que ela não podia entrar. “Tenho pesadelos com ele morrendo sozinho e com medo”, escreveu ela.
Um mês depois de seu pai falecer, ela escreveu um artigo para o jornal USA Today. Goldberg teve permissão para visitá-lo, mas sua irmã morava longe e sua mãe estava em quarentena estrita. “Li um poema para ele”, relatou. “Eu sabia que ele podia me ouvir porque apertou minha mão quando recitei seus versos favoritos.”
Depois, ela foi ver sua mãe. Elas ficaram do lado de fora da casa, na calçada, chorando, sem poder entrar ou se abraçar.
Quando os funcionários da casa de repouso a incentivaram a participar de um grupo virtual de luto, Goldberg recusou. “Usar o computador parecia o oposto de cura”, conta ela. Todos os dias ela era bombardeada pelas notícias com o número de mortos. Ela não queria mais sentir aquilo.
Mas uma noite, quatro meses depois, ela fechou a porta de seu quarto e se conectou à plataforma Zoom. Havia uma caixa de papelão por perto com rascunhos de poesias e objetos de seu pai. Dois facilitadores e sete pessoas participavam da reunião. “Meu nome é Rose e meu pai morreu”, disse, e uma sensação de catarse tomou conta dela. Uma mulher havia perdido o marido com quem foi casada por 65 anos; uma mãe solo havia perdido sua mãe; outra filha havia perdido o pai, um ex-fuzileiro naval.
“O luto precisa ser presenciado”, disse um facilitador, e Goldberg soube que era verdade. “Havia algo nessa presença que curava”, explica ela. “Isso me ajudou a entender o que aconteceu.”
Ela já não chora tanto a ponto de não conseguir falar quando o assunto é seu pai e relembra a época em que o visitava antes de precisar observá-lo através das portas de vidro.
No dia de Ano Novo, ela escreveu um artigo final, para o Los Angeles Times, que inspirou os leitores a escreverem para ela contando suas próprias perdas: um aluno do ensino médio cujo irmão havia morrido; um vendedor que perdeu os pais; e outros escreveram para contar que também decidiram participar de grupos de luto.
“Imaginei que encontraria muitos enlutados com expressões tristes. Me perguntei se fazia sentido participar para testemunhar mais sofrimento”, escreveu ela. “O que encontrei, no entanto, foram pessoas inteiras, mas de coração partido. Como eu. Lutando contra a pandemia e ansiando por um novo futuro, enquanto aprendem como construir pontes após perderem seus entes queridos.”
Recuperando-se pelo ativismo
Em 8 de julho de 2020, dia do funeral de seu pai, Kristin Urquiza publicou o que chamou de “obituário sincero” no jornal Arizona Republic. Nele, descreveu Mark Anthony Urquiza como “um admirador da natureza” e “quem dava vida à festa”. Então continuou: “a sua morte deve-se ao descuido dos políticos que continuam a prejudicar a saúde de pessoas de pele mais escura através de uma evidente falta de liderança, recusa em reconhecer a gravidade dessa crise e incapacidade e falta de vontade de fornecer uma orientação clara e decisiva sobre como minimizar os riscos.”
Em maio, o governador do Arizona, Doug Ducey, reabriu o estado e incentivou os moradores a retomarem suas vidas normalmente. Mark foi a um bar de karaokê com alguns amigos e duas semanas e meia depois estava morto. Urquiza ergueu um altar em frente ao capitólio estadual e convidou o governador para o funeral.
“Fortes emoções tomaram conta de mim”, relata Urquiza. “Não era só tristeza; era raiva. Eu sabia que precisava canalizar isso para algo, do contrário, tinha medo de implodir.” Para ela, combater a pandemia com ativismo era o único caminho a seguir.
Urquiza tirou uma licença de seu trabalho em São Francisco e fundou a Marked by COVID, uma plataforma de recursos e defesa para aqueles que perderam entes queridos na pandemia. Todos os dias, ela conversa com um grupo de pessoas que conheceu há um ano. Eles moram em Brownsville, Brooklyn e Jefferson City e organizam campanhas, planejam manifestações e pressionam políticos. Eles estão convocando uma comissão semelhante à constituída depois do 11 de setembro para investigar a resposta federal à pandemia. O vínculo entre eles é a perda.
“Acho que não vou conseguir encontrar paz com o falecimento de meu pai até saber que trabalhamos muito para encontrar paz para o falecimento de todos”, relata Urquiza.
Os organizadores da Convenção Nacional Democrata tomaram conhecimento da história de Urquiza e, em agosto, ela apareceu em um vídeo gravado para a abertura da programação da convenção, culpando os governantes do país pela morte de seu pai. O vídeo viralizou rapidamente.
Em 19 de janeiro, na noite anterior à posse de Joe Biden, Urquiza observou luzes serem acesas ao redor do Memorial Lincoln em homenagem aos 400 mil norte-americanos que haviam falecido de covid-19. Ela estava no Arizona com sua mãe, mas participou de uma reunião virtual de seu conselho consultivo com quase outros mil participantes. Foi a primeira vez que as perdas pela covid-19 foram homenageadas em nível nacional.
“Por muitos meses, passamos pelo luto sozinhos”, disse Kamala Harris em seu discurso. “Esta noite sofremos e começamos a cura, juntos.” Após meses de negação da pandemia por políticos e pela população, a cerimônia simples deu a Urquiza um certo alívio, algo que ela não sentia desde a morte de seu pai. Pela primeira vez, ela conta, “consegui ver a cura no horizonte”.
Encontrando uma comunidade virtual
Sabila Khan começou a ter insônia depois que seu pai morreu. Tarde da noite, alguns dias depois de assistir ao enterro dele por transmissão ao vivo em sua casa em Nova Jersey, ela procurou alguém para conversar na internet. Em um grupo do Facebook relacionado à covid-19, ela perguntou se alguém conhecia um grupo de luto. Ela e outra integrante, Angelina Proia, decidiram criar um.
Todos os dias, o grupo de apoio à perda de parentes e amigos para a covid-19 recebe dezenas de postagens em homenagem a entes queridos, pedindo orações e compartilhando fotografias de momentos mais felizes. Os membros respondem com corações amarelos, um indicativo de que compartilham da perda. A cada semana, Khan dá as boas-vindas aos novos participantes pelo nome e publica os recursos que coletou: diversos links para terapia gratuita ou a preço acessível, aulas de meditação às terças-feiras, grupo de luto pelo Zoom às sextas-feiras à noite e sábado à tarde. Elas recebem em média 400 novos membros por semana.
“Nosso país está enfrentando um grande luto”, ressalta Khan. “Tamanho trauma e perda não têm precedentes na era moderna.”
Seu pai, Shafqat Khan, que era organizador comunitário, havia se mudado do Paquistão para Nova Jersey com sua família e defendia os direitos dos imigrantes. Meses depois de sua morte, a filha viu que o trabalho que estava fazendo era uma continuação do legado do pai.
Ela sabe que algumas pessoas não têm outro lugar para recorrer e ninguém mais que os entenda. “Sim, é perturbador”, lamenta ela, “mas este se tornou meu objetivo: dar conforto a essas pessoas. Estou suportando o trauma e aprendendo com ele”.
Todas as sextas-feiras à noite, dezenas de membros se conectam ao Zoom para falar sobre o que os está ajudando a lidar com a perda, o que não é tão útil assim e o que desencadeia seu sofrimento. Eles choram e riem juntos. Falam sobre a inveja de ver fotos de pacientes recuperados da covid-19 saindo da UTI — e como isso os faz se sentir culpados. Khan sabe que ela nunca vai se recuperar da maneira como seu pai morreu — sozinho e incapaz de falar com sua família.
Mas quando ela sai da reunião em grupo discutindo sobre a morte, ela se sente cheia de vida. “Nesses momentos, sinto que de alguma forma estamos extraindo o bem dessa tristeza sem fim”, salienta ela. “Isso é o que tem trazido cura.”
Oração pela cura
Ao longo da história, as sociedades encontraram maneiras públicas de lamentar pelos mortos: por meio de roupas, rituais e cerimônias. A pandemia atual mudou drasticamente o processo de luto, mas a tecnologia está ressuscitando a perda — e a cura — como uma experiência coletiva.
Recentemente, numa noite de sexta-feira, Flor Betancourt se reuniu remotamente com diferentes pessoas: seu outro irmão em Manhattan, um primo na Geórgia e a amiga de infância mais próxima de Betancourt que agora é enfermeira na Flórida.
Quando seu irmão mais novo, Juan, foi enterrado, Betancourt e sua mãe começaram uma Novena do Rosário, nove dias de oração na fé católica. Ela enviou o link de participação por mensagens de texto e e-mails. Seu primeiro Rosário pela plataforma Zoom teve 24 participantes. Agora, seis ou sete parentes e amigos se juntam a cada semana.
Um participante disse que seu primo morreu de covid-19 e os participantes responderam em um murmúrio coletivo. “Meu Deus”, lamenta Betancourt. Ela o adiciona à lista de oração, a qual vem aumentando em dezenas nos últimos 10 meses. Em seguida, Betancourt começa o Rosário em um espanhol rápido e contínuo:
“Madre admirable,
Madre del buen consejo,
Madre de nuestro Creador,
Madre de nuestro Salvador.”
A luz verde sinalizando o alto-falante acende em cada janela conforme os participantes ecoam cada frase. “Ruega por nosotros” — rogai por nós.
“Ó Deus misericordioso, acolha nossos familiares que morreram, incluindo nosso mais próximo e querido, Juan Vazquez”, complementa Betancourt. “Sempre seremos gratos pela bênção de tê-los conhecido. Ajude-nos a entender que a morte não é o fim, mas um novo começo.”
Os participantes respondem dizendo amém e fazendo o sinal da cruz, depois começam a se despedir.
“Na próxima semana, no mesmo horário, 19h30”, enfatiza Betancourt. “Eu amo todos vocês.” Ela faz um coração com as mãos e encerra a sessão.
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