Por Goreth Albuquerque para Vamos Falar sobre o Luto
Com a partida do irmão mais velho, tão próximo e amado, acabou também o mundo como Goreth o conhecia. Numa linda carta despedida ela descreve o absurdo de lidar com a ausência de quem sempre esteve lá
Em seu último aniversário, em 11 de março de 2021, o administrador Venâncio de Sousa Albuquerque Neto fez 55 anos e ligou já tarde da noite para a mãe, Naira, para contar que aquele havia sido um dia muito especial. Todos os amigos de seu trabalho anterior se lembraram da data e ligaram para parabenizá-lo. Até mesmo colegas queridos que não via desde a faculdade telefonaram. Na conversa com a mãe, Venâncio quis, além de dividir com ela a alegria de se sentir amado, fazer um agradecimento especial e comovido pela sua vida, por todo amor dela recebido. No dia seguinte, Naira estava justamente contando sobre esse telefonema radiante para a filha, Goreth, quando recebeu a notícia de que ele acabara de sofrer um AVC. Venâncio chegou a ser socorrido e levado ao hospital onde permaneceu em coma por mais de um mês, até falecer, sem jamais recobrar a consciência.
No dia do seu falecimento, Goreth se deitou no sofá olhando a buganvília florida que o irmão adorava (e cuidava tanto) e escreveu esta carta.
Era uma segunda-feira e o próximo sábado, dia em que ele religiosamente visitava a casa da família e com cuja voz a irmã sempre acordava, seria para sempre sem ele.
Fortaleza, 4 de maio de 2021
Irmão,
A buganvília está muito florida. Os galhos imensos desde a última poda que você fez, parecem ter crescido com uma rapidez ainda maior. Talvez eu não tenha percebido a brevidade do tempo entre uma poda e outra sempre que você fazia. Chove muito, deitada no sofá enquanto espero a liberação do seu corpo, vejo na parede da sala, uma foto em preto e branco da nossa primeira comunhão. Você e eu, olhando um para o outro e um crucifixo atrás de nós é testemunho de nosso rito de fé. O próximo domingo será dia das mães. Também há na parede uma foto em que estamos nós, os filhos, com nossa mãe, registro de um desses domingos em que ainda criança comemoramos a data. Há ainda fotos de seus filhos, hoje dois rapazes, ainda bebês. Tudo registro de tempos que nem bem me dei conta e já passou. Mas há os outros que não estão em nenhum lugar a não ser em mim, como sua voz conversando lá fora na vinda habitual do sábado para consertar o que precisasse, podar a planta, trazer um pão feito por você ou uma feijoada e servindo de sinal de que deveria me levantar porque sua presença indicava que o dia já andava lá pelas 9 ou 10h, nos sábados em que resolvia me dar ao desfrute de permanecer deitada por mais tempo. Há também os quadros que você ficou de voltar e pregar na parede porque no penúltimo sábado que nos vimos eu ainda não estava certa sobre as posições e pedi sua opinião: Ah, minha irmã ai é contigo. Decide e me avisa que eu venho de novo. Continuo indecisa, mas não teremos o “de novo”, assim como não sei para quem dirigir as perguntas que eram suas e para as quais não terei suas respostas: você gostou do resultado do Oscar? você acha que tá estranho o barulho do meu carro e o que será que pode ser? Se a oficina da revisão deixou o carro com problemas que não tinha, volto lá ou procuro outra oficina? Vou mudar de assinatura da tv qual o plano que vale mais a pena? Qual o melhor aplicativo, qual o caminho mais seguro, qual a configuração do computador, qual o preço justo? Qual a senha da mamãe? Diz aí uma série boa para eu assistir… Também não terei seus alertas: tá lembrando de pagar ipva? Olha se tua CNH tá no prazo! Tem cuidado quando andar por tal rua! Antes de abrir a garagem observa bem! Assiste ao documentário que falei que você vai gostar! Tem vinho de promoção em tal lugar.
Hoje, já mais velhos que as crianças das fotos, temos os dois, dúvidas, críticas e discordâncias da religião que conformou a manifestação de espiritualidade do menino e da menina que sorriem na imagem-testemunho do ritual de fé da nossa primeira comunhão, contentes e crentes que estávamos do amor e da potência de um Deus pai, filho e espírito santo que a todos perdoa e salva. No último dia em que estivemos juntos, já no hospital, li para você um trecho de livro um antigo de ensinamento do budismo tibetano que falava sobre compaixão, apego ao mundo da matéria e suas delusões (sim é “delusão” mesmo), práticas de tomar para si o fracasso e dar para os outros a glória como caminha de purificação de nossos defeitos e de iluminação. Falei em seu ouvido porque havia escolhido essa leitura: é que a filosofia budista hoje me responde mais sobre espiritualidade.
E hoje, no entendimento desses ensinamentos, penso em Cristo, aquele da cruz assistindo a devoção das crianças da fotografia, como um buda iluminado. Então peço a ele por você e por mim. Que te receba e te guie para tua nova experiência e que me ajude a viver sem tua presença, sem tuas respostas, ajudas e precauções.
Se puder, me ajuda ainda com uma pergunta que terei que descobrir a resposta: qual o remédio para ocupar vazios desérticos?
com amor,
Goreth Albuquerque, sua irmã, para sempre em todos os tempos e em todas as direções
P.S (06/05): mamãe botou um buquê da buganvília que você plantou e cuidou, para ir junto com você. deve ser pra florir seus próximos caminhos. as flores da bungavília são mais bonitas que seus espinhos. próximo domingo é dia das mães…
Goreth Albuquerque é gestora cultural da Secretaria de Cultura do Ceará e nasceu 11 meses depois do irmão, Venâncio.
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