Dunker: ‘O luto é paradigma para pensar a experiência humana da perda’

Por Berta Maakaroun para o Estado de Minas

Escrito sob o impacto da morte da mãe do psicanalista, livro ‘Lutos finitos e infinitos’ traz reflexões sobre os significados das perdas individuais e coletivas

 

Perdas. De um ente querido. De um relacionamento amoroso que se encerra. De amigos. De convivências. De nacionalidade. Da saúde. De um ideal. Se à primeira convencionamos chamar de luto, em que a morte é referência, as demais estão associadas a uma condição da vida, são “lutos do estar”, como ressalta Christian Dunker, psicanalista, professor titular do Instituto de Patologia da Universidade de São Paulo (USP), autor do livro “Lutos finitos e infinitos” (Editora Planeta/Paidós).

“O luto não se resume à perda de uma pessoa amada, mas é uma espécie de paradigma genérico para pensar a experiência humana da perda”, afirma o psicanalista.Se e das nove experiências consideradas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) mais prejudiciais à saúde mental envolvem perdas: de parentes próximos, do trabalho, além de perdas como a separação dos pais para as crianças, a separação do casal, a perda da saúde, com adoecimento grave, mudanças de cidade ou país, passagens da infância para adolescência, desta para a idade adulta ou envelhecimento.

“Mesmo as duas únicas condições não referidas a perdas pela OMS, a violação de direitos humanos, a segregação e a estigmatização, são perdas de uma certa pertinência à comunidade humana”, considera Dunker.
Em abordagem teórica ancorada na psicanálise, antropologia, sociologia e na política, Christian Dunker escreve “Lutos finitos e infinitos” sob o impacto da morte de sua própria mãe. Nesse processo de elaboração da perda, reflete como esse luto se conecta e convoca lutos anteriores, como o de seu pai, o luto de sua avó e do segundo marido dela, que tratava por avô: não chegou a conhecer o avô biológico, desaparecido, em uma batalha na Segunda Guerra Mundial, perto de Moscou, portanto, objeto de um luto infinito. “Um luto termina quando a perda se integra em uma cadeia de lutos que o precedeu e o tornou possível. Essa tarefa pode se afigurar terminável para alguns e infinita para outros. O luto é uma experiência de conexão e desconexão entre separações, envolvendo reparações e transformações futuras, e não apenas passadas”, sustenta.
Dunker considera que a perspectiva individualista das sociedades modernas torna o trabalho de elaboração do luto psíquico cada vez mais solitário e difícil: não conta com grandes narrativas religiosas, nem muito apoio comunitário. “Encontramos, em contrapartida, um outro dispositivo que é a literatura”, afirma.
Diferentemente dos lutos finitos, elaborados em um espaço de tempo, em que “algo se perde tornando-se passado, algo se transforma vigorosamente no presente e algo é reconstruído e permanece conosco no futuro”, há lutos que, por motivos históricos ou estruturais, se tornam infinitos.
É esse novo tipo de luto que Dunker introduz na obra: tem dimensão política importante, à medida em que o luto inconcluído no âmbito familiar se conecta ao luto de outras pessoas, que têm o seu luto aberto e inconcluído também, sendo uma importante referência as mães da Plaza de Mayo, que, em ato ritual semanal, lembravam filhas, filhos, netas e netos desaparecidos sob a ditadura brutal.
A sociedade brasileira carrega inúmeros lutos infinitos pela ausência do devido reconhecimento, respeito e reparação do Estado. “Podemos olhar a formação do Brasil a partir de uma população de enlutados. Milhões de mortos nas travessias, nos apresamentos, nas caravanas, nas epidemias, nas expedições guerreiras, nos cativeiros indígenas e negros, nas epidemias catequistas”, aponta Dunker.

Escravizados perderam a sua nação e a sua liberdade; indígenas perderam parentes, o modo de vida e o território; judeus ibéricos perderam pátria e religião; e, ao cabo de tudo, portugueses perderam o seu império. Mais recentemente, somam-se a estes o luto de mortos e desaparecidos pela violência da ditadura militar, da pandemia de Covid-19, e diariamente, corpos que se empilham nas periferias metropolitanas pela violência policial; ou pela violência política.

“A hipótese de pensar a formação do Brasil a partir do luto coletivo e massivo nos quatro âmbitos definidos por Freud, pessoas, países, ideias e amores, nos leva a reconsiderar o ‘trato dos viventes’ como formação de uma unidade simbólica, composta da combinação entre estruturas antropológicas e processos históricos, políticos ou econômicos”, afirma Dunker.
O trato dos viventes compreende a disputa narrativa entre vivos, mortos e ainda não existentes. “Isso também permite entender a revolta daqueles a quem foi negado o luto, os impasses no processo de reparação, a reafirmação brutal dos processos que levaram à perda, ao silenciamento da história, enquanto esse trauma e essa fantasia do Brasil convivem como polos formativos de um sintoma fracassado”, afirma Dunker.
Para ler a entrevista publicada pelo Estado de Minas, clique aqui.
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