Reflexões: Uma conversa sobre espiritualidade
Por Nazaré Jacobucci para Blog Perdas e Luto
“Namastê – O sagrado que habita em mim honra o sagrado que habita em você” (Saudação típica do Sul da Ásia)
Nos dias 15 e 16 de setembro eu participei da 1º Conferência Internacional: Sonhos, Psicologia Profunda, Alma e Espírito, organizada pelo Instituto Sedes Sapientiae em parceria com a St Mary’s University de Londres. Na conferência muito discutimos sobre a experiência humana com o sagrado, tanto consciente quanto inconscientemente, e os estudos e achados de Carl Jung sobre o tema. Após a conferência, e ainda muito impactada por falas tão expressivas e reflexivas sobre Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Santo Agostinho, Rumi (teólogo sufi persa do século XIII) e Thomas Merton (monge trapista da ordem dos beneditinos), fiz uma análise sobre o quanto esse tema perpassa pela minha prática clínica e, claro, fiz uma profunda reflexão pessoal sobre a minha própria relação com o Sagrado e/ou Divino. Por ser um tema complexo e pouco discutido na atualidade, principalmente no âmbito acadêmico, decidi compartilhar com vocês algumas dessas reflexões.
É inegável que a espiritualidade é uma característica humana que, dentre outros aspectos, proporciona ao indivíduo a possibilidade de encontrar significado e propósito para a sua vida. Embora estejam relacionadas, espiritualidade e religião não são equivalentes. A espiritualidade é estrutura e a religiosidade é processo. Giovanetti diz: o termo espiritualidade designa toda vivência que pode produzir mudança profunda no interior do homem e o leva à integração pessoal e à integração com outros homens e a natureza. A espiritualidade tem relação com valores e significados: o espírito nos permite fazer a experiência da profundidade, da captação do simbólico, de mostrar que o que move a vida é um sentido, pois só o espírito é capaz de descobrir um sentido para a existência. Leonardo Boff fala que a espiritualidade não é monopólio das religiões nem dos caminhos espirituais codificados. A espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano. Várias áreas do saber vem enfatizando o tema da espiritualidade como estratégia de enfrentamento dos fenômenos advindos da trajetória da vida nos contextos de saúde e doença dos indivíduos.
Religião é proveniente do latim “religio” e “ligare”, que significa ligar de novo, compreendendo a busca de Deus por parte das pessoas. Segundo Liberato, religião é um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos designados para facilitar o acesso ao sagrado. Um código de crenças que orienta comportamentos, determinado fortemente pela cultura. A prática de uma religião contribui com a convicção de que existe uma dimensão maior, responsável pelo controle sobre as adversidades presentes na vida, capacitando o indivíduo a lidar com os acontecimentos de forma mais serena, confiante, e reduzindo o estresse e a ansiedade. A experiência da religiosidade faz parte de uma vida com sentido, em que o ser humano explora a força de sua dimensão espiritual.
Na minha prática diária com pessoas em processo de luto e/ou finitude, frequentemente as vejo conectadas com uma religião, mas não com o Divino em si. Nesses casos, não há uma comunhão de fato com o Divino, aquele que nos traz a serenidade para compreender os mistérios que compõem a vida. Tenho observado uma desconexão aqui: ao invés da prática religiosa trazer serenidade para o indivíduo em momentos difíceis da vida, ela traz estresse e raiva. Atendo pessoas que em seu processo de luto trazem consigo uma raiva imensa de Deus, como se Ele as tivessem traído. Falas como: “Por que Deus levou o meu filho? Ele era tão bom” – “Eu rezei tanto para que Deus protegesse meu marido/esposa e ele permitiu que aquele acidente horroroso acontecesse” – “Eu estou com muita raiva! Como Deus pode fazer isso comigo justo agora?” e tantas outras frases são proferidas contra Deus, claro, essas frases são ditas num momento de profunda dor e tristeza. Mas mesmo nesse contexto precisamos fazer uma reflexão sobre essa crença em um Ser Divino que fará tudo o que nós pedirmos e nos livrará de todos os males que acometem a humanidade; inclusive a morte. Algumas pessoas ao longo da vida estabelecem uma relação simplesmente transacional com Deus e não uma relação profunda e transformadora.
Em verdade, ao longo da história, muitas pessoas mantiveram uma relação superficial com esse Ser Divino o qual chamamos de Deus, e não uma relação de comunhão, com sentido e, muitas vezes, de resignação diante de seus mistérios. Desde o nascimento sabemos que um dia vamos morrer, que um dia as pessoas que amamos também irão morrer e que não temos o menor controle sobre certos acontecimentos da vida. Nós não sabemos quem morrerá primeiro – os pais ou os filhos – e, principalmente como iremos morrer. Não temos como controlar a morte. Ela acontecerá em algum momento e não temos a menor ideia de quando será. Tentar controlar a morte é como tentar controlar as batidas do coração: impossível. Ela simplesmente acontecerá.
Observo pessoas que depois de vivenciarem uma situação difícil e desafiadora se revoltarem e aniquilarem uma relação que deveria ser sagrada e com base na serenidade e na resignação. Hoje, vivemos numa sociedade com um acúmulo de informação que beira o caótico, mas sem uma profundidade que nos leve a ter uma aliança enraizada entre o sagrado que existe em nós e o Ser Divino que nos permite compreender que a vida é permeada por ciclos e pela dualidade. Haverá momentos bons e ruins, alegres e tristes, doces e amargos, justos e injustos, de ganhos e de perdas e, claro, de nascimento e morte. É a apreensão dessa dualidade que alarga a nossa alma e nos traz sabedoria para continuarmos a jornada da vida.
Gostaria de compartilhar com vocês um pouco do meu relacionamento com o Divino, da minha espiritualidade, e a relação disso com as perdas e o luto. É claro que eu fico triste diante de uma perda e, às vezes, destruída. Já experenciei a dor do luto algumas vezes em minha vida. Mas não fico inconformada. Eu já assimilei a informação de que posso perder a quem amo a qualquer instante. Busco manter o equilíbrio entre as minhas expectativas e a realidade. Afinal, as minhas expectativas são abstratas, mas a morte é concreta. Essa forma de compreender os acontecimentos da vida tem como base os ensinamentos do estoicismo, escola filosófica da Antiguidade. Há um pensamento que eu, particularmente, gosto muito – “Não espere que o mundo seja como você deseja, mas sim como ele realmente é. Dessa forma, você terá uma vida tranquila”. Segundo o filósofo e psicoterapeuta escocês Donald Robertson, “para quem vê conformismo nessas palavras, uma ressalva: eles não estão propondo que você seja passivo em relação à vida, mas que aceite as coisas que estão além do seu controle e que já aconteceram”.
Eu já vivenciei momentos de graça plena em minha vida, mas também já experenciei situações bem difíceis. Quando me é concedia uma graça divina eu agradeço, e quando me é imposta uma dificuldade, eu não me revolto, eu acolho aquela dor e/ou tristeza e busco ficar em profundo silêncio e em estado de meditação com Deus para a compreensão daquele momento. Somente quando nós silenciamos a nossa mente, mergulhamos no templo sagrado interior que há em nós, entramos num estado de profunda reverência e conseguimos nos conectar com o Divino, é que compreendemos que estamos aqui para servir a algo maior. É a partir dessa consciência que entendemos que nada nos impedirá de seguirmos nossas vidas com propósito.
Cultivar a pratica do silêncio interior na vida cotidiana não é tarefa fácil, mas não é impossível. Para isso é preciso se concentrar em desenvolver a autodisciplina e o autocontrole. Isso pode ser feito por meio da meditação, da prática de Mindfulness, da oração, ou simplesmente da reflexão sobre seus próprios pensamentos e comportamentos.
“Mantenha-se em silêncio porque o mundo do silêncio é uma vasta plenitude” (Rumi – Teólogo e Poeta Sufi)
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