Nenhum luto é comparável ou pode ser classificado em alguma hierarquia (embora a nossa sociedade faça isso o tempo todo). Mas dá pra dizer entre os lutos que são subestimados ou impedidos de serem chorados, a perda gestacional, precoce ou tardia, é particularmente cruel.
Se você quer ajudar alguém que sofreu uma perda gestacional, a primeira coisa, portanto, é não subestimar a sua dor. Ela é tão grande, acredite, como a de uma mãe que perde um filho depois do nascimento. A partir dessa premissa de respeito e empatia as atitudes positivas em direção dos pais que sofreram a perda devem ser equivalentes às que você dirigiria a uma mãe ou pai que perdeu um filho já nascido.
– Não subestime a dor da perda gestacional.
– Não aja, em relação à mãe ou pai enlutados, como se nada tivesse acontecido.
– Não diga que “eles ainda terão outros filhos”.
– Não pergunte se eles “já começaram a praticar”.
– Se o bebê já tinha um nome, refira-se a ele pelo nome ao manifestar seus sentimentos.
– Pergunte se pode ajudar de alguma forma.
– Se a pessoa quiser falar sobre o assunto, esteja preparado para ouvir.
– Se houver um funeral como no caso das perdas tardias, não pense em faltar (você não faltaria ao enterro de uma criança já nascida).
– Em suas conversas com a família evite culpar a equipe médica, o hospital ou a forma de parto escolhido ou qualquer coisa que só agrava o sofrimento.
– Evite indicar novos profissionais para “a próxima vez”.
– Não diga para a mãe ou pai que eles têm que superar rapidamente.
– Permita que o casal tenha seu tempo de luto. Não existe um limite ou uma regra de normalidade para a tristeza passar.
Existem grupos de apoio à perda gestacional e neonatal, como o Do luto à Luta que reúne depoimentos de quem vive ou viveu esse drama e informações e orientações úteis e inspiradoras para ajudar os pais nesse momento. Para entender o que se passa no coração de uma mãe que sofreu uma perda gestacional entrevistei uma amiga querida, a editora Clarissa Oliveira, que no ano passado perdeu seu primeiro filho, o Martin, com 40 semanas de gravidez.
O que, além da dor da perda, foi mais difícil para você, seu marido e família, ao enfrentar o drama da morte do filho antes do nascimento?
O mais difícil foi entender “quem eu era” depois da morte do Martin e voltar à vida com essa nova identidade, essa trágica história para contar. O primeiro mês, apesar da dor imensa e da saudade infinita, foi mais tranquilo, pois me permiti ficar protegida, cercada somente de pessoas mais próximas, e sentia muito amor e muita gratidão por ter vivido com ele, mesmo que por tão pouco tempo. Mas ter de enxergar o “horror” das pessoas ao se defrontarem com a minha perda me assombrava. No fim das contas, acabou sendo menos terrível do que na minha fantasia.
Para o meu marido e a minha mãe, a sensação de injustiça foi muito ruim. Como eu já havia lidado com a indignação do “por que eu? Por que comigo” antes (já que passamos por uma série de tratamentos para engravidar), eu não tinha essa expectativa de justiça, então fui poupada desses pensamentos torturantes.
Os hospitais estão preparados para oferecer acolhimento e respeito nessa situação?
Fui atendida numa maternidade particular por uma equipe humanizada (composta por obstetra, assistente e anestesista), além de contar com a presença do meu companheiro, duas doulas (profissionais voltadas para o apoio emocional do parto e puerpério) e a minha mãe. A indução ocorreu num quarto escuro e silencioso e eu pari no centro cirúrgico, onde me permitiram ficar quase uma hora com o meu filho. Considerando outras histórias que ouvi, acho que fui privilegiada. Tive o parto normal que eu quis, sem lacerações nem violência obstétrica, e tive um momento íntimo com o Martin e o meu companheiro. Limpei, beijei, vesti e conversei com ele. Foi o momento mais sublime da minha vida.
No entanto, gostaria de ter tido a oportunidade de passar mais tempo com ele – de levá-lo para o quarto, por exemplo, em vez de me sentir pressionada para liberar a sala de parto no centro cirúrgico. Também me foi oferecido um remédio para secar o meu leite, que recusei. Gostaria que tivessem me perguntado sobre isso, porque se eu não fosse uma pessoa questionadora e desconfiada, teria tomado o remédio e me privado do processo de produzir, ordenhar e doar leite, que foi primordial no meu processo de cura.
O que, entre a rede de apoio de amigos e familiares, ajudou vocês?
A “blindagem” que a minha família, meus amigos, minha equipe no trabalho e minha doulas fizeram foi essencial naquele primeiro momento. As mensagens de amor e a presença no enterro (e depois) também foram muito importantes. Faço análise e foi ótimo já ter uma relação estabelecida com um profissional ao invés de buscar ajuda de um estranho. Depois de um mês, mais ou menos, busquei contato com pessoas que também passaram pela perda gestacional ou neonatal e sensação de não estar só foi reconfortante.
O que não ajudou?
A falta de contato de alguns amigos e a culpabilização não dita – porém evidente – de alguns parentes. Embora eu entenda a dificuldade dos outros em lidar com esse tipo de tragédia, e compreendo que nomear um culpado seja inevitável para alguns, eu esperava mais empatia e presença de algumas pessoas.
O que você gostaria de dizer (ou fazer) a alguém que vivesse a mesma perda?
Gostaria de dizer que eu sinto muito, que estamos juntos. Gostaria de perguntar e dizer o nome do bebê que morreu, e responder com o nome do meu filho. Eu me colocaria à disposição e, caso a pessoa quisesse, indicaria grupos de apoio virtuais ou presenciais. Diria que o amor é infinito, mas a dor é imensa, e pediria que eles se dessem a permissão de senti-la e viver o luto.
Você buscou ou busca alguma ajuda terapêutica especializada?
Eu já fazia análise há anos e continuei com o mesmo analista, que segue a linha junguiana. Fui a um encontro de um grupo de apoio para perdas gestacionais na minha cidade, e foi bom, mas não retornei porque preferi trabalhar o meu luto no meu tempo, de forma mais individual. Mas foi importante ter ido e me conectado com as pessoas, e indico o grupo para quem passou por uma experiência parecida.
Como foi a sua volta ao trabalho? Há algo que você sugeriria nos ambientes de trabalho para ajudar quem passe por uma perda como a sua?
Foi difícil. Eu pedi para voltar antes de terminar minha licença, num esquema de 3 dias por semana. Eu queria “voltar logo”, como incentivavam todos, mas tinha medo de enfrentar “o mundo real”. Meu ambiente de trabalho é muito acima da média. A equipe é muito acolhedora e a empresa é nota dez. Mas foi doloroso, em especial porque alguns colegas não souberam como tocar no assunto e optaram por ignorá-lo completamente. Teve dia em que eu chorei na mesa do computador ou no banheiro e tudo bem, houve compreensão. O que eu acho importante é que o assunto não vire tabu e que não seja ignorado.
Você sente que a perda gestacional é subestimada pela sociedade de uma forma geral?
Sim e não. A minha perda foi uma perda tardia. Eu estava prestes a completar 40 semanas. Não acho que ninguém subestimou a minha dor. No entanto, como o bebê não existiu para muita gente, a reação é como se fosse a dor de uma frustração, e não a perda de uma pessoa real. Isso é muito difícil, porque ouvi coisas como “logo vocês engravidam de novo” e teve parente que nunca falou o nome do meu filho (inclusive cogitaram não ir ao enterro porque tinham “cirurgias marcadas naquela hora”, o que certamente não teriam dito se fosse o enterro de uma criança que chegou a viver fora do útero). A percepção de que o meu filho não existiu para o mundo é terrível. Nesse sentido, eu acho que é uma perda subestimada. Por outro lado, “perder um filho”, no nosso imaginário, é o pior que pode acontecer com uma mulher, então, de certa forma, é até superestimado.
De que forma você acredita que as pessoas poderiam se solidarizar mais e compreender melhor quem passa por uma perda gestacional?
Acho que a empatia é a solução para quase todos os males. Acredito que a única forma de conseguir se solidarizar é se permitir ficar numa situação de desconforto. Sentir a dor junto. Mas esse discurso não combina com os valores do nosso mundo imediatista e “anti-dor”. Portanto, se não for possível se colocar nesse lugar terrível – o que eu entendo–, pelo menos há de se fazer um esforço para não negar ou exacerbar a dor do outro. Alguns pequenos gestos fariam toda a diferença: não fingir que não aconteceu, não comparar dores ou perdas, não apressar o luto, olhar no olho e, sobretudo, dizer o nome do falecido. Há muito poder num nome.
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A perda gestacional é uma perda real e uma dor imensa: não a subestime