Por Rosana Ritta e Suelen Soares para OCP News
Dia dos Finados. Feriado cristão que existe desde o século 2. Neste dia, as pessoas oram e visitam os cemitérios levando flores e velas como uma forma de homenagear seus entes queridos. Falar da vida, exaltá-la em versos e músicas, é fácil. Ironicamente, um dos mais populares hinos à vida, “O que é o que é?”, foi composto por um artista que encontrou a morte prematuramente aos 46 anos, em 19 de abril de 1991, em um acidente de carro no interior do Paraná.
Gonzaguinha, filho de outro mito cancioneiro popular brasileiro, o Gonzagão, em um de seus maiores sucessos, exaltou o quanto a vida “é bonita, é bonita e é bonita”. Mas se falar da vida é fácil, o mistério da morte também traz à arte um tom sedutor e instigante que uma turma de artistas tão talentosos quanto Gonzaguinha vem explorando há séculos. Embora todos saibam que a ordem natural da vida seja nascer, viver e “não ter a vergonha de ser feliz”, como imortalizou Gonzaguinha, ou “deixa a vida me levar”, como canta Zeca Pagodinho, o morrer é a única certeza que carregamos desta vida.
Trilha sonora para o próprio funeral
Ligar canções à morte faz parte da história da música. A Sonata nº 2, por exemplo, uma das últimas composições do pianista romântico polonês
Frédéric François Chopin, morto aos 39 anos, em 17 de outubro de 1849, em Paris, ficou conhecida como “Marcha Fúnebre”. Chopin, um dos mais importantes compositores do piano no mundo, escolheu a trilha sonora para seu funeral. Ele pediu que o “Réquiem”, de Mozart, fosse tocado. Mas como os principais trechos foram compostos para cantoras, e a Igreja de Madeleine não permitia cantoras em seu coro, o funeral foi atrasado em duas semanas, até que a igreja aceitasse, desde que as cantoras ficassem atrás de uma cortina de veludo preto. Os solistas incluíram o mesmo trabalho que já tinha sido cantados nos funerais de Beethoven e Vicenzo Bellini. E no seu enterro, no Cemitério Père Lachaise, foi tocada a
Marcha Funeral da Sonata 2 da Op. 35.
A intenção social que Chico Buarque nega
Considerada pela revista “Rolling Stone”, a melhor música brasileira de todos os tempos, a canção “Construção”, de 1971, de Chico Buarque, fala da tragédia de um homem que morreu enquanto trabalhava, em plena recessão da Ditadura Militar. Porém, Chico já recusou, terminantemente, em diversas entrevistas e trabalhos acadêmicos, qualquer intencionalidade social no ato de compor essa canção. Segundo ele, a brincadeira foi em concluir as frases com palavras proparoxítonas.
“…Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego…”
O drama social eternizado em Faroeste Caboclo
Na biografia “O Trovador Solitário”, de Renato Russo, morto aos 36 anos em 11 de outubro de 1996, há uma versão de que o jornalista William Bonner “ameaçou” recitar os 159 versos da longuíssima “Faroeste Caboclo”, de mais de 9 minutos, para a companheira de bancada, Lilian Witte Fibe, para convencê-la de que Russo merecia a metade do “Jornal Nacional” dedicada à sua vida no dia de sua morte. Deferência repetida quase dois anos depois, com ninguém menos que Frank Sinatra. Apesar de a equipe de mais de 20 pessoas não ter dúvidas da importância de Renato, Lilian não ligava imediatamente o nome à obra. Rock não era sua praia. Para reforçar, Bonner disse brincando que, se Lilian quisesse, ele poderia recitar todos os 159 versos de “Faroeste Caboclo” ali mesmo, no ato. Ante a ameaça da demissão coletiva, o apresentador não os recitou. […] De qualquer forma, lembra o autor, como muitos brasileiros, Bonner ainda sabe de cor os 159 versos de “Faroeste Caboclo”.
“… E Santo Cristo com a Winchester-22
Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor
E o povo declarava que João de Santo Cristo
Era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade
Não acreditou na história que eles viram na TV…”
Espaço tão reduzido quanto o da cova
O maluco beleza Raul Seixas, Chico Buarque, Baden Powell, Paulo César Pinheiro e Sérgio Britto, cantor e compositor da banda Titãs; Dado Villa-Lobos, Renato Russo e Marcelo Bonfá também conseguiram “imortalizar” a morte em canções. Algumas trazem os momentos que a antecedem, o depois ou até mesmo protesto e reflexão, como é o caso da composição “Morte e Vida Severina”, de autoria do Chico Buarque, inspirada no livro com o mesmo nome, escrito pelo brasileiro João Cabral de Melo Neto.
No livro, Melo Neto relata a luta e as dificuldades da migração nordestina em busca de um lugar melhor para viver. Na música, Chico fala do espaço da cova em comparativo ao espaço que estes mesmos personagens conseguiram enquanto vivos.
“Esta cova em que estás, com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo…”.
Previsão e pedidos em canto para a minha morte
Outra questão recorrente nas letras das músicas é a vontade que os compositores têm em querer adivinhar o dia e como será sua morte. Raul Seixas morreu em 1989, aos 44 anos, mas a sua obra continua uma referência para aqueles que nem eram nascidos quando ele se foi. Na letra de “Canto para a minha morte”, Raul aguarda a morte se despedindo aos poucos de coisas, pessoas e situações do seu cotidiano.
E pergunta “Qual será a forma da minha morte?”. O compositor divaga em suposições que vão de um acidente de trânsito até um simples escorregão na calçada. No fim, deixa pedidos aos entes queridos e lamenta o que deixou de fazer, dividindo-se entre odiar e amar a morte, que ele deseja que demore a chegar.
“Vou te encontrar vestida de cetim
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida
Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida
Existem tantas
Um acidente de carro
O coração que se recusa abater no próximo minuto
A anestesia mal aplicada
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio…”
“Me enterra na Lapinha”
Lapinha”, de Baden Powell, foi eternizada na voz de Elis Regina, outra cantora que encontrou-se com a morte aos 36 anos, em 19 de janeiro de 1982. Nesta composição, o autor pede detalhadamente o que ele quer no dia em que morrer. Mas ao contrário de Raul, não se lastima pelos erros vividos e se contenta em ter apenas um último pedido atendido. Morto em 26 de setembro de 2000, aos 63 anos, ele foi enterrado no Cemitério São João Batista, no bairro Botafogo, no Rio de Janeiro, e não na “Lapinha”.
“Tenho um pedido só
Último talvez, antes de partir
Quando eu morrer me enterre na Lapinha,
Quando eu morrer me enterre na Lapinha
Calça, culote, paletó almofadinha
Calça, culote, paletó almofadinha…”
Canções de despedida e arrependimento
“Love In The Afternoon”, de Dado Villa-Lobos, Renato Russo e Marcelo Bonfá, retrata a dor de perder alguém. A letra é melancólica, como a maioria das músicas da Legião Urbana.
“Eu continuo aqui,
Com meu trabalho e meus amigos
E me lembro de você em dias assim
Um dia de chuva, um dia de sol
E o que sinto não sei dizer.
Vai com os anjos! vai em paz.
Era assim todo dia de tarde
A descoberta da amizade
Até a próxima vez”
A despedida de MC Daleste
Em um caso mais recente, o funkeiro
MC Daleste, morto durante um show no interior de São Paulo, em julho de 2013, em um crime ainda não esclarecido, segundo a família teria previsto a própria morte aos 19 anos, em uma música descoberta meses depois em um celular dele dado aos primos.
Na letra, o funkeiro fala que entendeu um pouquinho da morte. E segue cantando: “Peço a Deus que cuide de vocês por mim, quando eu partir estarei olhando por todos vocês. Família, amigos, fãs. Não vou deixar ninguém sentir a falta. Eu vou encontrar Jesus, pode ficar tranquilo, minha parte eu vou fazer. Respeitem minha vontade que eu peço de coração. Hoje vocês estão com saudade de mim, mas eu estou aqui, olhando por vocês”. Daleste sabia que ia morrer em breve e por isso fez a canção? Seria uma despedida?
Para tudo tem um jeitinho, menos para ela
Tem um dito popular que diz “pra tudo na vida tem um jeito, menos para a morte”, talvez seja por isso que insistamos em falar tanto em como seria o momento da sua chegada. Na verdade, não estamos preparados em ver as pessoas que amamos partir e, tampouco, em pensar na nossa – sinal da cruz e bate na madeira três vezes.
A música “Epitáfio”, letra de Sérgio Britto gravada pela banda Titãs, apesar de revelar certo arrependimento do personagem, deixa a mensagem de que devemos viver mais, valorizar os detalhes, amar e até morrer desse amor.
“Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor
Queria ter aceitado a vida como ela é
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier…”
Titãs também gravaram, incluindo uma versão com Marisa Monte, outra cancão que é considerada um clássico sobre a morte. Assinada por Charles Gavin, Tony Beloto, Sérgio Brito e Paulo Miklos (os 4 integrantes da banda), “Flores” foi gravada em 1989, no disco Ô Blesq Blom.
“A dor vai curar essas lástimas
O soro tem gosto de lágrimas
As flores têm cheiro de morte
A dor vai fechar esses cortes
Flores
Flores
As flores de plástico não morrem…”
Tragédia da Chapecoense alavancou “Trem Bala”
Com apenas 19 anos, a cantora paranaense Ana Vilela viu sua música “Trem Bala” ganhar o topo das listas de sucesso nacionais logo após ter sido postada em seu canal oficial do YouTube em outubro de 2016. A tragédia ocorrida com o time da Chapecoense, um mês depois, teria sido responsável por alavancar o hit que com frequência ilustra as mensagens póstumas nas redes sociais.
“Não é sobre tudo que o seu dinheiro é capaz de comprar
E sim sobre cada momento, sorriso a se compartilhar
Também não é sobre
Correr contra o tempo pra ter sempre mais
Porque quando menos se espera a vida já ficou pra trás
Segura teu filho no colo
Sorria e abraça os teus pais enquanto estão aqui
Que a vida é trem-bala parceiro
E a gente é só passageiro prestes a partir…”
Brindando a morte e fazendo amor
É uma tarefa difícil, mas, quem sabe, se exercitarmos todos os dias, com uma boa música ao fundo, não passemos a tratar a morte de uma maneira menos pesada?
E neste Dia dos Finados, pós Dia das Bruxas, para amenizar sua dor, procure músicas que elevem o astral e que podem até brincar com a morte, como a vovó do rock, Rita Lee, faz, e muito bem, em “Doce Vampiro”.
Venha me beijar,
Meu doce vampiro,
Ou ouuuuu
Na luz do luar
Ãh ahãããããh
Venha sugar o calor
De dentro do meu sangue, vermelho
Tão vivo tão eterno, veneno
Que mata sua sede
Que me bebe quente
Como um licor
Brindando a morte, e fazendo amor,
Meu doce vampiro
Ou ouuuuu
Na luz do luar
Ãh ahãããããh
Me acostumei com você
Sempre reclamando, da vida…
Me ferindo, me curando, a ferida…
Mas nada disso importa,
Vou abrir a porta,
Prá você entrar,
Beija minha boca,
Até me matar…de amooooor!…”