Dia desses, em meio a uma consulta habitual, fui surpreendida por uma pergunta feita, com cautela, por uma paciente: Doutora, quanto tempo de vida eu tenho?
Contextualizando, essa paciente não era consultada regularmente por mim, mas já a atendera algumas vezes pois trabalhava na equipe que cuidava dela. A empatia tinha sido imediata já na primeira consulta. Mulher de meia idade, mãe, até pouco tempo ativa, no momento convivia com a piora de uma doença de longa data. Doença essa que, agora, limitava as viagens que gostava de fazer, os exercícios que antes eram sua rotina e ia, aos poucos, também levando a uma perda da independência que tanto admirava.
Plenamente ciente da incurabilidade de seu quadro, tendo já vivido um luto em relação a própria vida, ela já entendera quais eram as suas prioridades. Sua pergunta não vinha do medo do momento final estar próximo, mas da sua única angústia diante da doença que convivia: Será que sofrerei?
Seu medo era sobre as dores, físicas ou emocionais, que poderia sentir. Incomodava-se com a possibilidade de ter que passar seus últimos dias em um ambiente impessoal, longe da família, de ter seu corpo invadido por procedimentos possivelmente (e provavelmente) fúteis. Em especial, temia que ela, com uma mente tão viva, ainda tão dona de si, em algum momento não estivesse mais capaz de expressar suas vontades. Em suma, seu maior medo era que lhe fosse privado o direito de decidir sobre sua vida no momento próximo a sua morte.
Em 2012, através de uma resolução, o Conselho Federal de Medicina dispôs sobre as diretivas antecipadas de vontade. As diretivas vêm a ser justamente o conjunto de desejos de um paciente em relação aos cuidados e tratamentos que ele quer ou não receber no momento do que chamamos de fim de vida. Essa resolução torna como dever ético o respeito as diretivas antecipadas do doente e legitima a relação entre médicos e pacientes sobre esse assunto.
Muitos pacientes ainda não têm conhecimento sobre a possibilidade de exprimir suas vontades sobre seu momento final. Muitos profissionais de saúde também não conhecem esse assunto. Ou não entendem o quão importante é para seus pacientes a garantia de terem seus desejos respeitados.
Isso não é uma inovação ou invenção brasileira. Diversos países possuem legislação que discute sobre as diretivas antecipadas e normatiza a prática e a documentação das vontades do paciente em relação ao seu cuidado em fim de vida – o chamado testamento vital – ou a instituição de um procurador ou um responsável que tomará decisões por ele nesse momento. Nos EUA existe, por exemplo, um site que permite que se baixe arquivos para auxiliar na confecção da documentação. O papel do médico nesse caso será explicar e orientar (nunca definir) sobre o tipo de cuidado que pode ser oferecido diante de um paciente com uma doença grave e incurável.
A resolução do CFM não fala sobre como, em termos práticos, o testamento vital ou a instituição de um procurador para tratar dos assuntos do cuidado do doente deve ser realizada. No Brasil ainda não temos uma legislação que regule essas práticas, mas já existe projeto de lei sobre o tema, que discute como fazer do ponto de vista legal essa documentação.
Discutir sobre diretivas antecipadas de vontade e testamento vital com nossos doentes é o momento de entender quais são os desejos, os medos, desmistificar inseguranças, garantir o cuidado – sempre o mais importante dos conhecimentos médicos – independente do momento da vida do paciente. É entender que morte é um processo natural, através da valorização da vida e da autonomia do doente. Confeccionar um testamento vital pode ser o momento que aquela pessoa irá discutir suas vontades com sua família, por exemplo. É um momento que é direito do paciente de viver. Além disso é a chance informar a população o conhecimento sobre diretivas antecipadas. É importante que essa discussão não seja acadêmica, e sim de todos, para que tenhamos melhor regulado no nosso país o direito de gerir sobre o cuidado que teremos diante do nosso inevitável fim de vida.
Após discutir com a paciente sobre diretiva antecipada, sobre seu prognóstico e sobre sua doença, seguimos falando sobre os seus planos para o fim de semana, como aquele tratamento atual tinha melhorado suas dores, sobre seus filhos, sobre a vida dela, no geral, nos dias antes da consulta e nos dias que viriam depois. Rimos um pouco, falamos amenidades e nos despedimos. Ciente que a morte faz parte da vida, foi fácil seguir focando no quanto vale nossas escolhas para cada dia que temos a alegria de ter vivido.
Para quem quiser ler mais sobre assunto:
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2012/1995_2012.pdf – resolução de 2012 do CFM sobre diretivas antecipadas
https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7653063&disposition=inline – projeto de lei sobre diretivas antecipadas
https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2130319 – em inglês. JAMA Patient Page, 2015. (tem versão em espanhol Online)
http://www.caringinfo.org/files/public/brochures/Understanding_Advance_Directives.pdf – em ingles. National Hospice and Palliative Care Organization
Natália Nunes é médica, oncologista clinica, atualmente médica da Oncoclinica-RJ, ex staff do Inca 4 – hospital de cuidados paliativos. Acredita que como médica o mais importante é prestar cuidado aos pacientes, e que uma longa conversa ajuda em alguns casos mais que muitos exames.
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