Falar sobre a morte e a dor da perda ainda é um tabu
Por Joyce Moises
Para A Tribuna
Luto não é só da morte. Há outras situações de perdas que têm peso semelhante
Com certeza, este é um tema delicado, em qualquer época da vida, com qualquer pessoa. “Assuntos relacionados a morte, luto, dor e sofrimento ainda são velados, não fazem parte de uma fala natural e nem são bem-vindos socialmente”, afirma a doutora em psicologia Lucélia Elizabeth Paiva, que atua nas áreas clínica e hospitalar. “É uma boa hora para fazermos uma reflexão real sobre a vida e a morte, praticarmos a escuta ativa, criarmos grupos de compartilhamento. Ainda mais que estamos vendo crescer os índices de depressão, suicídio, automutilação, jogos fatais…”.
Faltaria uma educação para o luto? “Está no bojo de uma educação para a cidadania, para a compaixão, para o bem viver. Isso implica acolher o sofrimento do outro, humanizando as relações. Estamos pouco habituados a ouvir a necessidade alheia; a estar presentes, mas respeitando o silêncio do momento, e disponíveis para apoiar sem julgar e nem querer resolver nada”, responde ela, que estuda morte, luto e perdas há mais de 30 anos e trabalhou em pronto-socorro e nas UTIs do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Lucélia também escreveu o livro A Arte de Falar da Morte para Crianças, fruto de sua tese de doutorado, para reforçar a importância de aprendermos a lidar com as perdas desde a infância: “Luto não é só da morte. Situações, como sair da casa ou da empresa onde a pessoa esteve a maior parte da vida, refletem-se numa perda importante de condição financeira e do seu lugar na sociedade, por exemplo. A aposentadoria costuma envolver um tipo de luto. E, quando tudo isso não é bem elaborado, acolhido, tornará mais difícil e doloroso encarar perdas maiores. Eu costumo dizer que falar da morte também é repensar a vida, sabendo que ela é finita – para todos”.
O pediatra Carlo Crivellaro completa: “Devemos entender também que luto é um processo, não um evento. Demanda um tempo, que difere para cada pessoa. Pressionar alguém a superar rapidamente, e voltar a ter vida normal, implicará em outros problemas ou reações negativas”.
• Filhos viram anjos. A depiladora Hagar Fernandes sentiu muito a morte do irmão em maio de 2012, de infarto. Meses depois, quando aconteceu o incêndio na boate Kiss, no Rio Grande do Sul, ela pensou: “Se eu estou tão triste com a perda de uma pessoa querida, imagine a dor provocada pela morte de 241 jovens de uma vez”. Aquilo mexeu demais com a depiladora, que queria fazer algo. Quando escutou de uma mãe “meu filho virou um anjo”, lembrou-se dos anjos que sua sogra faz há anos com tecido e porcelana. E assim nasceu o projeto Meu Filho, Meu Anjo.
Hagar foi até a cidade de Santa Maria entregar um anjo personalizado, feito de porcelana, para cada mãe que perdeu um filho naquela tragédia: “Foi uma experiência única. Saí num sábado cedo de Santos e estava de volta na segunda-feira à noite. Depois disso, em 2015, fui a Borborema (SP), onde um acidente com ônibus tirou a vida de 11 pessoas entre estudantes e professores”.
Dia 8 de junho haverá uma missa em homenagem aos estudantes falecidos no acidente na Rodovia Mogi-Bertioga, e Hagar estará lá com 25 anjos para entregar às mães. Como ela começou esse projeto sem dinheiro nenhum, aceita doações de voluntários, que a contatam pelo Facebook e doam R$ 50 por anjo.
• É demorado ou rápido. Pela experiência da advogada Verena Maria Patelli, a forma como muitos tratam o enlutado demonstra ainda insensibilidade. “Você acha que tem muito apoio, mas poucos entendem suas reações e que cada um precisa de um tempo, que tanto pode demorar quanto ser rápido. Para mim, está demorado e eu sinto que mudei depois do falecimento da minha mãe, de câncer”.
A parte mais simples, de dizer “vamos dar uma volta”, “quer conversar?”, a advogada teve: “E foi bom. Em compensação, houve quem não entendesse que cada um carrega o que pode e vinha contar histórias piores que a minha, achando que isso me confortaria”. Verena afirma ainda que a dona do apartamento alugado pela mãe avisou: “Você tem todo tempo do mundo para tirar tudo de lá”. Só que depois cobrou por cada dia normalmente. “Eu não ia abusar, mas cadê a solidariedade? Também paguei por mais duas semanas de sinal não utilizado à operadora de tevê a cabo. Jamais deixaria o nome da minha mãe sujo”.
Do primeiro dia de outubro a 22 de novembro de 2016, Verena praticamente se mudou de Santos para Campinas, porque ninguém descobria qual era a doença da mãe. “Estava ao lado dela e não podia ajudar. Ao mesmo tempo, agradeço por ter participado de seus últimos momentos. Se eu estivesse longe, teria sido pior. E não adiantou ouvir que, por eu cultivar um lado espiritual, seria mais fácil. Não foi e continua não sendo tranquilo. Só não dá para ter revolta. Chegou a hora”, diz a advogada.
• Confessionário virtual. Para sete amigas jornalistas e publicitárias, que viveram o luto, chegou a hora também de abrir canais de comunicação, seja via site, seja com encontros e palestras. Elas lançaram há pouco mais de um ano o projeto Vamos Falar de Luto e estão preparando uma atividade para o segundo semestre, no Sesc Santos.
“A sociedade evita tocar nesse assunto, por achar que entristece a todos. E nós sete concluímos o contrário, que gostávamos de falar sobre nossas perdas, que era bom relembrar pessoas queridas; apenas faltavam interlocutores para isso. Queremos que as pessoas inspirem umas às outras contando suas histórias, e até o momento já publicamos no site do projeto mais de 50 delas”, explica Cynthia Almeida, que perdeu o filho do meio, de 20 anos, num acidente de carro.
Esse grande confessionário digital já recebeu mais de 2 milhões de visualizações de mais de 1,5 milhão de pessoas, interessadas em se comover, refletir, entender, ter conforto, informações sobre grupos de apoio em vários Estados. “Os trabalhos terapêuticos são muito importantes, mas nosso ponto de vista leigo também é útil. Não estamos sozinhos e podemos ajudar mais alguém a não ficar na escuridão. Além disso, sabemos que, assim como falar e ler, escrever sobre o luto faz muito bem, dá um calor no coração”, comenta a jornalista.
Num depoimento emocionante postado no site do projeto, Cynthia relatou o seguinte: “Quando você perde um filho, muita gente aparece querendo ajudar… Eu topei e não poderia ser mais grata. Não dava para encarar essa de ‘me deixa, que eu dou conta sozinha’. Eu não dava. Era bem assim: quer uma indicação de terapeuta? Quero. Quer livro? Quero. Quer abraço? Quero! Quando a gente aceita, o amor vem até nós”.
• Cada luto é único. A publicitária Mariane Maciel perdeu naquele mesmo ano de 2009 a mãe, de câncer, e o noivo, na queda do avião da Air France. E quando colocou a mão na massa para construir com Cynthia e as outras amigas o projeto Vamos Falar de Luto teve ainda mais certeza de que cada luto é único. “Fizemos uma pesquisa que gerou mais de 300 respostas de pessoas enlutadas. E recebemos mais de 400 e-mails nos três dias seguintes à nossa participação no programa Esquenta (Rede Globo), por exemplo. Nossos retornos sempre iniciam com a frase ‘eu não sei o que você está sentindo’”.
Isso porque, embora todos em algum momento tenham uma experiência de perda, ela é absolutamente pessoal. “Afirmar que a gente sabe o que a pessoa está passando pode fazê-la sentir que sua dor é subestimada. Buscamos inspirá-la a encontrar sua própria forma de lidar com o assunto por meio de reflexões, histórias, orientações de especialistas que postamos em nosso site. Quem sabe podem ser úteis?”, diz a publicitária.
• A tecnologia e as lembranças. Hoje, as pessoas se fazem presentes em diversos meios, mesmo depois que morrem. Têm perfis nas redes sociais, estão nas fotos do Facebook, aparecem nos arquivos da família no Instagram… São novas questões para lidarmos, conforme comenta Mariane: “Hoje, quando alguém que amamos morre, temos a tecnologia para nos lembrar. É fato que uma vida mais digital começa a provocar mudanças em como vivemos o luto – e parece que estamos apenas no começo dessa história”.
Uma amiga de Mariane, por exemplo, chamada Amanda, continua a entrar na página do Facebook de seu pai, morto em 2014, para matar a saudade e chegou a enviar mensagens inbox para ele nos dias mais difíceis. E recentemente foi noticiado que uma startup russa de inteligência artificial oferecerá um chatbot (simulador de ser humano) para enlutados, aproveitando os rastros digitais da pessoa que morreu para compor seu comportamento, e assim manter a interação on-line pós-morte.
“Muitas vezes, você é surpreendido por lembranças geradas automaticamente pelas plataformas ou por um amigo que resolveu compartilhar sua saudade. Isso pode ser recebido como uma grata surpresa ou gerar uma tristeza inesperada. Mas será que o mesmo já não acontecia no universo off-line? Já me alegrei muito ao encontrar um bilhete da minha mãe perdido dentro de um livro. Mas também já chorei em espaço público ao sentir o perfume que ela usava”, admite a publicitária.
Sinceridade com as crianças
Se falar de morte é difícil para nós, adultos, imagine para as crianças. “Quando acontece, seja com o pet de estimação, seja com um ente querido, pode ser confuso e assustador, ainda mais se for num acidente”, explica Carlo Crivellaro, que é membro da Sociedade Brasileira de Pediatria e da Highway to Health International Healthcare Community. “Para que haja confiança, precisamos dar apoio e sermos sinceros”, continua o médico, que recomenda termos clareza sobre o tema para nós mesmos, porque só assim poderemos responder aos questionamentos infantis, que vão ser muitos.
Carlo Crivellaro orienta:
• “Muitos pais têm dúvida sobre quando começar a abordar o assunto; outros preferem nem falar. Essa não é a melhor solução, pois a morte faz parte da vida de todos nós. Está nas plantas, nos bichinhos, nos amigos e familiares. Quando a criança quiser conversar a respeito (para saber sobre o porquê de a florzinha do vaso morrer, por exemplo), não fuja do assunto”.
• “Entre 5 a 7 anos, a criança começa a entender melhor como relacionar sua vida com o mundo e a morte com algo que perdeu. Por isso, use exemplos práticos. Lembra daquele feijãozinho no algodão que todos nós plantamos na escola? Pode ser um aliado. Repita e vá contando como a planta nasce, cresce e morre. Tal experiência mostra que esse processo é natural e que independe de ter cuidados. Já crianças até 3 anos não percebem claramente isso, mas entendem que não brincarão mais com a tia, ou ainda que o avô não a buscará mais na escola. Só a partir de 12 anos é que conseguem entender todo o processo”.
• “Não minta e nem relacione morte com sono, contando historinhas do tipo: ‘ele dormiu para sempre’, ‘descansou’ ou ‘fez uma longa viagem’. As crianças entendem as frases como são ditas, e isso pode confundir a cabecinha delas. Ao ponto de acharem que a vovó falecida está apenas dormindo e vai acordar a qualquer momento; que todo mundo que viaja nunca mais volta; ou que o papai não pode cochilar, se chegar em casa cansado, ou vai morrer. Aliás, a própria criança pode passar a ter medo de dormir”.
• “E se elas ouvirem que ‘fulano virou uma estrelinha’? Vão achar que todas as estrelas são pessoas mortas. Se um ente querido estiver muito doente, é inútil esconder, porque elas captarão o clima da casa. O melhor é explicar que a pessoa está doente e que é grave. Caso venha a óbito, em vez de pegá-las de surpresa, comece a conversa relembrando do ciclo da vida da plantinha, daquele feijãozinho que vocês plantaram. Encare como uma discussão em aberto (aproveitando para tirar dúvidas), e não como um discurso!”
• “Os pais devem partir de fatos básicos e ir descobrindo o que o filho sabe e pensa, para decidir quantas informações a mais ele tolera. Nem todos os menores suportam tantos detalhes. Mais uma vez, eles precisam de apoio e sinceridade. Por isso, nunca esconda seus sentimentos. Você pode chorar, dizer que será difícil para todos da família, que sente saudades e que está sofrendo”.
• “Deixe que cada criança fale das próprias emoções. Garanta que não está sozinha e que sempre será cuidada, principalmente se a perda for de um dos pais. E tenha paciência, pois é possível que pergunte as mesmas coisas várias vezes. Também considere buscar ajuda da escola e até de um psicólogo, aumentando o acolhimento. Quanto a levar ou não a velórios e enterros, não force, explique como é, pergunte se quer ir e não permita que se sinta culpada, se não for”.
• “O mais importante é agir com honestidade, verdade, para que seu filho confie em você. E não tem problema dizer ‘não sei’. Buscar as respostas para o luto junto com seu filho poderá uni-los ainda mais”.
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