Luto: por que o ritual de despedida é importante?
Por Joana Gontijo para O Estado de Minas
A morte de um ente querido leva a um processo de elaboração da perda. Em tempos de coronavírus, essa vivência não ocorre e isso pode impactar a saúde mental da pessoa
O luto é um processo natural de resposta a uma quebra de vínculos, ou seja, quando se perde alguém ou algo significativo na própria vida. A vivência do luto é de extrema importância para ajudar na elaboração das perdas, por isso é normal, esperado e necessário. É o que esclarece a psicóloga do Grupo Oncoclínicas Flávia Sorice. Mas essa é uma situação que se complica quando o ritual da despedida não acontece. Uma circunstância cada vez mais comum em tempos de pandemia. Poucas pessoas são autorizadas a participar dos enterros de entes queridos, que ocorrem também sem o intervalo comum do velório, quando se encontra o conforto da presença de amigos e outros familiares.
“Os rituais de despedida são organizadores e muito importantes para um processo de luto normal dos indivíduos. Esses rituais contêm elementos tradicionais, familiares e de repetições, mas que contribuem muito para a melhor elaboração daquela perda específica”, explica a psicóloga. Segundo ela, as principais funções dos rituais são marcar a perda de um membro da família, facilitar a expressão pública do sofrimento, possibilitar que o falecido seja lembrado, ofertar algo de previsível ao enlutado, introduzir o novo papel social que o enlutado irá desempenhar, promover um espaço limitado para chorar a perda, possibilitar um espaço para compartilhar memórias e sentimentos.
Por outro lado, o impedimento desse ritual pode trazer um sério impacto na saúde mental das pessoas, ampliando o risco de um luto complicado, ou seja, quando o processo se dá de forma mais intensa e duradoura. Quando o indivíduo não consegue processar a situação vivida, nem se despedir da forma que lhe permitisse ter um maior senso daquela realidade e concretude da morte. E é o que vem acontecendo em relação às mortes provocadas pela COVID-19. Muita gente tem ficado sem informações corretas sobre o estado de saúde de pacientes quando estão internados e, no momento do óbito, a dor parece maior, muito pela ausência deste ato normal de despedida.
“Muitos hospitais tentam contribuir no processo de despedida propondo estratégias remotas, ou seja, comunicar com aquele ente querido em processo de morte através de videochamadas, mensagens de voz, cartas, entre outros. Outra possibilidade é, após o funeral, criar um período memorial em casa junto às fotos do falecido, acendendo uma vela e seguir os rituais de sua religião ou cultura”, orienta a especialista.
É comum, em rituais de funeral, receber conforto com as palavras e abraços dos amigos que trazem lembranças da pessoa que se foi. “Portanto, pode-se criar neste momento um espaço on-line no qual essas pessoas queridas deixam suas condolências. Líderes religiosos podem ofertar um espaço para aquela família, de forma virtual, para ajudar no conforto, caso isso faça parte de um ritual familiar. É tudo muito novo e, portanto, também é um momento de nos reinventarmos”, diz Flávia.
PROCESSO O significado, a forma de vivenciar o luto, os rituais de passagem e o processo de enlutamento variam muito conforme cada sociedade, cultura e religião, como elucida a psicóloga, e não é possível precisar, em termos de tempo, quando termina o luto. Mas há um parâmetro de consenso de que, na perda de um familiar próximo, dificilmente a elaboração se dá em menos de um ano e, em pacientes que já viviam um processo de doença grave, ou já recebiam um acompanhamento paliativo, muitas vezes o luto se inicia antecipadamente, o que reduz esse tempo no pós-óbito por muitas questões já estarem elaboradas e ressignificadas. “Já quando é uma morte repentina, inesperada e precoce, este tempo de luto pode se prolongar e trazer muitos transtornos psicológicos”, ressalta Flávia.
Já para o psicólogo e professor do curso de serviço social da Estácio Ricardo Castro, por se tratar de experiências humanas subjetivas, é impossível prescrever qualquer resposta universal e total aos mecanismos psíquicos. Em sua opinião, não é possível calcular um tempo do luto, seja em situações com ou sem pandemia. “Não existe a situação e o tempo ideal do luto. Não há um processo de luto padrão e, dessa forma, o tempo subjetivo para a elaboração da perda não poderá, nunca, ser cronometrado. Ainda que consigamos encontrar semelhanças e aproximações entre o nosso luto e o de outras pessoas que conhecemos, existem aspectos singulares que criam respostas subjetivas muito particulares. O luto é um processo complexo de elaboração de uma perda e o seu tempo de duração está relacionado diretamente à relação com aquilo se perdeu”, constata.
O luto é uma experiência solitária e singular para cada um, continua Flávia Sorice. Vivenciá-lo é o que leva a uma reconstrução e reorganização da própria vida. A partir do luto, os indivíduos podem se situar novamente no mundo e encontrar um novo lugar em suas vidas para aquele que se foi. “As ressignificações começam a acontecer. É essencial atravessar esse momento; afinal, ele faz parte da existência humana e nos lembra o quão fortes são os vínculos que nos ligam às pessoas que amamos. Caso perceba que este processo está patológico, é importante buscar um auxílio médico ou psicológico.”
É evidente que as reações emocionais de quem perde pessoas queridas, por agora, podem perdurar por muito mais tempo do que duraria em uma sociedade sem a pandemia do coronavírus. “Isto é, ainda que o luto seja temporário, ele pode ser um caminho extremamente mais doloroso e intenso para aqueles que perdem pessoas queridas nesse momento, justamente porque as ‘regras do jogo’ do luto a que estávamos acostumados mudaram”, pondera o psicólogo. A regra agora é o isolamento social. Tanto para pacientes quanto para a família, há um potencial devastador quando se é obrigado a passar os últimos momentos com alguém de forma isolada, seja no processo da internação ou do próprio velório e enterro.
“Como enlutar sem as presenças físicas, os abraços, os toques e os olhares já tão esperados em um momento de elaboração de uma perda? O desafio é reinventar as possibilidades de elaboração dessa despedida ao longo do tempo. Se só é possível que estejam presentes poucas pessoas nas internações e dentro dos velórios e das cerimônias de enterro, seguiremos essas regras para o bem coletivo da sociedade”, diz Ricardo.
É hora de estar mais disponível para ajudar os enlutados nesse período em particular. Ricardo lembra que as redes sociais e os telefonemas podem ser instrumentos possíveis, ainda que não ideais, de manter a presença, a vigilância, a escuta ativa e atenciosa, o cuidado, o acolhimento, o fortalecimento de laços e o apoio emocional.
O ritual do luto, no fim das contas, ajuda a deixar o outro ir e autoriza a si próprio ficar e a existir sem a presença física dele. Como lembra Ricardo, aceitar a morte é reconhecer que esse será um processo inevitável. “Isso não significa que as mortes, em tempos de pandemia, sejam lidas como qualquer processo natural de finitude da vida. Para isso, é importante que possamos colaborar. Em uma comunidade coletiva, é importante que suportemos o relato de dor que vem do outro em busca de elaboração. Assim, construiremos condições coletivas para que a dor e o sofrimento, consequentes da morte/perda, sejam condição humana a ser superada. E não algo a ser negado”, conta.
Palavra de especialista
Maria Clara Jost, doutora em psicologia, da Tip Clínica
Fechar um ciclo
“Neste momento da história, estamos testemunhando e experienciando um luto coletivo. Um luto decorrente de uma guerra em que o inimigo é invisível, não localizável, não identificado. Um luto que não escolhe pessoa nem lugar. O medo toma conta de tudo e de todos e, agora, também nos tira a possibilidade de despedir, de estar ao lado, de se conformar, de fechar um ciclo, de se reorganizar, de ter coragem de seguir em frente. Todavia, tudo é novo neste tempo que estamos vivendo. Precisamos descobrir novos meios, novos caminhos, novas estratégias de enfrentamento. Viveremos o luto, de qualquer modo, porque ele é uma necessidade humana, porém, teremos que vivê-lo de outra maneira. Talvez mais para dentro do que para fora. Talvez com menos gente, menos celebrações, menos ritos. De fato, o rito é um momento instituído culturalmente, aquele tempo do encontro comunitário quando quem padece pode se sentir acolhido na sua dor. Entretanto, não dependemos do rito de despedida para apoiar e se deixar apoiar, para calar e acolher o que cala, para ouvir o nosso choro e o choro daquele que sofre. O que nos dá força para continuar, apesar de tudo, e talvez como nunca antes, é a certeza de que estamos juntos no mesmo barco, no meio da mesma tempestade, portanto, que podemos, cada um e coletivamente, reinventar e reconstruir o caminho que se abre depois de vencido o combate.”
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