Você já o perdoou?
Não tive que perdoá-lo porque nunca o condenei. Entendo que fez o que fez porque estava em um estado desesperador. E que na cabeça dele, a morte era a única saída. Nunca tive raiva. Minha escolha foi a de continuar vivendo e buscando a felicidade. Uma semana depois da sua morte eu estava no meu grupo de meditação. Aos prantos, mas presente.
O suicídio é previsível?
Uma das coisas terríveis que a gente ouve é: “mas você não viu o que estava acontecendo?”. Quem diz isso a alguém no momento do luto não tem noção da gravidade das suas palavras. O suicídio pode ser prevenido, mas não pode ser previsto. O suicídio é uma ideia planejada. A pessoa pensou nisso mais de uma vez e não apenas no momento daquele ato. Quem tenta uma vez, tem 50% de chance de tentar de novo. E ser bem-sucedido.
Como os familiares devem agir nesse caso?
É muito difícil. Essas famílias que tentam proteger um potencial suicida de si mesmo ficam esgotadas. A maior parte delas, sem assistência, tem que se organizar em rodízios. É muito sacrificado. Para essas famílias eu diria que há um limite para nos sentirmos responsáveis pela vida do outro.
Qual é o peso do estigma para a família?
Se falar sobre o luto é tabu, o luto por suicídio de alguém próximo é maior ainda. Por muito tempo eu imaginava que, onde quer que eu fosse as pessoas estariam me olhando e pensando: “ela é aquela que o marido se matou…” O que se pensa, geralmente, é que uma família em que acontece um suicídio não pode ser normal. É compreensível que se pense assim. Para nós que temos uma pulsão de vida, é difícil entender a pulsão de morte. Por outro lado, o drama acentua a compaixão. Recebi muito carinho e conforto por parte da minha família e dos amigos mais queridos. Alguns não conseguem lidar com isso e se afastam. É compreensível.
No exato dia da morte, como havia aquela festa na escola sobre a qual falamos na nossa última conversa, vi, de repente minha casa cheia de pais de colegas das crianças, as pessoas me cercando de cuidado, trazendo comida, oferecendo-se para levá-los para passear. Tive uma rede de grande proteção e solidariedade.
Como foi retomar a vida?
Minha família foi fundamental. Meus pais, maravilhosos. Minha mãe me estimulava muito a voltar a sair, a reencontrar os amigos e me divertir. Confesso que nas primeiras vezes em que saí, quase um ano depois, achava que tinha sempre alguém me olhando e me julgando: ‘Olha aí a viúva alegre”. Mesmo assim, eu me esforcei para seguir em frente. As pessoas me ligavam queriam saber como eu estava mas nunca que convidavam pra nada, constrangidas. Eu tive que pedir que me chamassem. Mesmo que eu não quisesse e não fosse, eu queria ser chamada. Lembro do meu constrangimento de pegar o elevador à noite, arrumada e com um vinho na mão… Mas concluí que não podia me guiar pelo que eu achava que os outros iriam pensar, mas pelo que eu mesma pensava.
Você gosta de falar do seu marido?
Eu adoro falar sobre o Marden. No primeiro ano eu falava dele e também com ele o tempo todo. Olhava para nossa foto ao lado da cama e dizia: “Ei Salabim (eu o chamava assim e ele a mim), veja a situação em que você me deixou”. Falava e chorava tanto que dormia e acordava chorando. Meus filhos me diziam de manhã: “mãe, você ainda está chorando?”. E eu respondia: ‘Não filhos, eu dormi e voltei a chorar agora” (risos).
Como você, enlutada, ajuda as crianças com o luto pelo pai?
O budismo me ajuda. Vivemos o presente e eu os ensino a não pensar em como poderia ter sido diferente. Aqui em casa não tem “e se?”. As coisas são o que são e temos que lidar com o que estamos vivendo
Como você decidiu estudar o tema do suicídio?
Quando meu marido morreu, eu ainda trabalhava na empresa da minha família, apesar de ser psicóloga há 20 anos e nunca ter deixado de atender no consultório. Mas naquele momento eu senti que era importante me desligar do trabalho na empresa e fui estudar tanatologia e suicídio. Depois segui com os estudos e me especializei em cuidados paliativos. Desde então venho tratando do tema e participando de congressos, cursos e dado palestras. Atendo muitos enlutados e tem sido muito bom, para mim e meus pacientes, eu estar nesse lugar com o meu próprio luto. O luto é individual e único, mas posso oferecer a escuta e mostrar que é possível seguir a vida.
O que você gostaria de dizer para um enlutado que perdeu alguém por suicídio?
Primeiro, duas coisas tem que ficar claras: o suicídio é conseqüência de uma ou mais doenças mentais. O suicida não é um covarde e se matar não é um ato de heroísmo. É muito importante entender que a pessoa não se matou. A doença o matou. Em segundo lugar, não devemos culpar o suicida por sua decisão. Ele agiu com as informações de que dispunha naquele momento. Ele não pede ajuda e disfarça muito bem sua condição. Fez o que podia.
É possível encontrar uma razão?
A família não deve procurar o por quê. Não existe essa resposta.