Pieces of a Woman: retalhos do luto
Por Joana Dantas para ComUm Online
Pieces of a Woman estreou no dia 7 de fevereiro na Netflix. A abordagem que assume sobre lidar com o luto, alicerçado na ímpar performance de Vanessa Kirby, rapidamente lhe concedeu reconhecimento mundial. Apesar de as críticas divergirem em relação à segunda metade do filme, as opiniões convergem num aspeto só: a trama conseguiu exprimir visualmente um tipo de perda que, por vezes, não é possível traduzir por palavras.
Pieces of a Woman segue a história de Martha Weiss (Vanessa Kirby), cujo parto natural em casa acaba da pior forma imaginável. Nos oito meses posteriores ao parto, a dor de Martha consome todos os aspetos da sua vida, corrompendo o casamento, a relação com a família e, em última instância, consigo própria.
A cena do nascimento é excruciante. Depois de ler a premissa da trama, o espectador sabe que fim esperar, prolongando e antecipando o terror do que irá acontecer. À brutalidade inerente de um parto, junta-se a presença do pensamento de perda iminente, que paira e vagueia durante os cerca de 23 minutos da cena one-shot.
Vanessa Kirby é, sem dúvida, o cerne do poder do filme, do início ao fim. Os nervos e o desespero causados pela dor são quase infligidos no próprio espectador, refletidos pelos movimentos e grunhidos de Kirby, a cara vermelha e coberta de suor pelo esforço.
Eventualmente, o bebé nasce. Por momentos, o momento é etéreo. A mãe segura a criança, o alívio desenhado na sua cara e na do pai, o contentamento da parteira, que observa em silêncio a cena pelo espelho. Ter tudo e perder tudo no mesmo minuto. Ver tanto amor transbordar num pequeno quarto, o alívio do casal e da parteira, aquele gentil e doce constrangimento do pai que tenta simultaneamente fotografar o acontecimento e cuidar da menina e da mulher – e abruptamente ter tudo isto arrancado, sem aviso, sem justificação, à frente dos seus próprios olhos. Apesar dos esforços da parteira (Molly Parker), a criança acaba por morrer.
E o que se faz depois com todo aquele amor? O que se faz com todo o amor que foi alimentado e nutrido durante nove meses? Como é que é possível imaginar a transição de carinho para uma outra coisa, de transformar a sensação de estar completo a estar completamente vazio? Como é que se consegue suportar o peso de tudo isto, de tal amor que de repente se transformou em perda, em luto?
Durante os próximos oito meses, Martha continua presa pela memória do que se passou naquele dia. O corpo de uma mãe de um recém-nascido – lacta e é obrigada a usar fralda, porque o corpo continua a expelir líquidos de pós-parto – atormenta-a, uma cruel lembrança do que poderia ter sido.
Vanessa Kirby capta na perfeição a solidão da personagem, no modo como Martha se move e foge ao toque, caminhando sempre sozinha em espaços também despidos e impessoais. Aos bocadinhos, acumula a dor por dentro, o luto a repor o amor que juntou durante nove meses.
O desespero é partilhado pelo marido, Sean Carson (Shia LaBeouf), que, ao contrário de Martha, se expressa fisicamente. Rapidamente perde o controlo sobre si mesmo e recorre a velhos vícios. Sean insiste em recuperar a antiga Martha e agarra-se à ideia de uma criança que simplesmente não tem, quando, por exemplo, pede para que não retirem os objetos de criança do quarto.
No entanto, pelo meio, o filme perde alguma da sua beleza. Assemelha-se mais a fragmentos de uma história em detrimento de algo completo. Apesar de expor vários aspetos da vida após a perda de um filho – a pressão que a mãe de Martha impõe à filha para prosseguir com uma ação judicial contra a parteira, o descarrilar da estabilidade mental do marido e a degradação do casamento de ambos -, o enredo perdeu parte do ritmo inicial, com escassas cenas de diálogo.
Não obstante, no final, reencontra o fio condutor numa das performances mais impactantes de Vanessa, quando finalmente externaliza a sua raiva num confronto com a mãe. Após as cenas do tribunal e da árvore enquanto rolam os créditos, o filme lança uma luz sobre a esperança, sobre a possibilidade de recuperar o espaço outrora ocupado pela dor e enchê-lo com algo mais gentil.
A banda sonora do filme carrega uma subtileza constante e um sentido de enlevo, mesmo durante as cenas mais severas, não tentando intensificar desnecessariamente cenas que por si só já são taciturnas; apenas acompanha e auxilia o relato da história tal como ela é. Assim como a cinematografia, todo o filme transborda uma delicadeza e um cuidado com a forma como representa um tópico tão delicado.
Em suma, apesar de ter perdido parte do ritmo, Pieces of a Woman é uma bela história de perda, amor e perseverança. Mostra como a dor é implacável, como consome todos os aspetos da vida de quem a sofre e de quem a rodeia, mas como, ainda assim, é possível superá-la.
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