Precisamos falar sobre a morte

Por Cynthia de Almeida para Vamos Falar sobre o Luto

Como a visão e as histórias inspiradores de uma médica inglesa que passou a vida acompanhando pacientes terminais podem nos ajudar a temer menos o momento do fim

flower-1359522_1920Precisamos falar sobre a morte. O convite pode parecer pouco animador e dá vontade, meio sem pensar, de responder “não, obrigada”. Mas nossa reação instintiva de querer fugir do tema, quase uma unanimidade na nossa cultura a partir da metade do século 20, tem feito mais mal do que bem à humanidade. Não falar sobre a morte não muda o fato de que vamos nos deparar com ela. Todos nós. Primeiro, com a de pessoas muito queridas. Depois, com a nossa própria. “A taxa de mortalidade permanece 100%”, lembra a médica inglesa Kathryn Mannix, especialista em cuidados paliativos, que passou 30 anos de sua vida dedicados a fazer companhia a pessoas à beira da morte. É com base nesse longo convívio com pacientes terminais e suas as histórias extraordinárias que a Dra Mannix escreveu o livro Precisamos falar sobre a Morte – Histórias e reflexões sobre a arte de viver e morrer (2019, editora Sextante).

E por que falar sobre a morte pode nos ajudar? Como a autora explica, nós compreendemos os grandes fatos da vida (nascimento, morte, amor, perdas, transformações), através dos filtros daquilo que já conhecemos. Como a morte tem se tornado um tabu cada vez mais absoluto, ela se distanciou da nossa experiência direta. “Até a metade do século 20, presenciar a morte das pessoas próximas em casa nos permitia adquirir essa rica sabedoria. Assistir à morte , escreve, “é como presenciar um nascimento: em ambos, existem estágios reconhecíveis em uma progressão de mudanças até o resultado esperado. Em essência, os dois processos podem evoluir de maneira segura, sem nenhuma intervenção, como qualquer parteira experiente pode confirmar. Na prática, o parto normal é provavelmente mais desconfortável do que a morte natural, mas as pessoas associam a ideia de morrer à dor e à indignidade, o que poucas vezes se aplica”.

O avanço da medicina e as possibilidades (muito bem-vindas) de prolongar a vida levaram as pessoas para os hospitais. Isso é ótimo enquanto há o que se fazer para curar alguém. No entanto, o que vemos, é que a ida para o hospital se tornou a norma mesmo quando a medicina não pode fazer mais nada. E, muitas vezes, sem os cuidados paliativos e seu conforto físico e emocional, torna mais angustiante o final da vida, para a pessoa e para a família. ” Tudo que ultrapassa o limite de salvar alguém para fazê-lo viver ‘suficientemente bem’ é inócuo. Nesse caso, a tecnologia é mobilizada para criar um novo ritual no leito de morte que, na verdade, é um triunfo da negação sobre a experiência.” escreve a autora.
Os últimos dias de vida e a forma como morremos continuam inalterados. A diferença é que perdemos a familiaridade que tínhamos com esse processo; perdemos o vocabulário e os códigos de conduta que nos serviram tão bem em tempos passados, quando a morte era reconhecida como inevitável. Em vez de morrer em um quarto familiar que evoca boas lembranças, cercados por pessoas que amamos, nos despedimos da vida em ambulâncias, salas de emergência e unidades de terapia intensiva

A primeira vez que a dra Mannix, então uma jovem médica, compreendeu o processo de morrer foi uma experiência definidora. A paciente era octogenária Sabine, uma senhora francesa internada em um hospital especializado em cuidar de doentes terminais. Viúva de um oficial britânico por quem foi a vida inteira apaixonada e admirava pela coragem, Sabine temia não ter a bravura do marido para enfrentar a morte que sabia se aproximar. Tinha medo de que sua “covardia” no final da vida a impedisse de se juntar ao marido no céu, algo em que acreditava fervorosamente. ‘Não serei digna”, suspirava. A confissão da paciente Sabine a uma enfermeira, foi reportada ao médico-chefe do hospital que convidou a dra Mannix para participar da conversa que mudaria sua vida e permitiria que ela, a partir de então, assistisse à morte com informação e preparo. “O que aprendi naquele dia, me manteve calma ao enfrentar as tempestades de medo de outras pessoas, me trouxe a confiança de que, quanto mais entendemos o processo da morte, melhor podemos gerenciá-lo”, conta a autora.

O médico sentou-se ao lado de Sabine na cama, segurou sua mão e começou: “A enfermeira me disse que a senhora tem algumas preocupações. Estou muito feliz que tenha contado a ela. Gostaria de discutir o assunto comigo?”, perguntou o médico. Sabine concordou. ‘É verdade que está preocupada com o processo da morte e com a possibilidade de que seja doloroso?”Sabine não se assustou com a abordagem direta. (…) Gostaria que eu lhe descrevesse como a morte vai acontecerA paciente concordou e segurando firme nas mãos do médico, vai ouvindo o relatoa primeira coisa que notamos é que a pessoas ficam mais cansadas. A doença suga a energia. (…) com o passar do tempo, ficam mais exauridas e, para ter mais energia, precisam dormir mais. Já percebeu que, se tirar uma soneca durante o dia, se sente menos cansada durante algum tempo depois que acorda? (…) bem isso quer dizer que a senhora está seguindo o padrão (…) o que esperamos que aconteça a partir de agora é que simplesmente se sinta cada vez mais cansada e precise de sonecas mais demoradas. (,…) com o passar do tempo, percebemos que as pessoas começam a ficar mais tempo dormindo e, durante parte desse tempo, o sono é ainda mais profundo, até que entram em coma. Ou seja, ficam inconscientes” O médico conta que nesse momento a equipe trata de ministrar as drogas necessárias para evitar qualquer tipo de dor e deixar a pessoa muito confortável. “Quando acordam, geralmente, elas nos dizem que dormiram bem. Parece que não percebem que ficaram inconscientes. E assim, no finalzinho da vida, uma pessoa fica simplesmente inconsciente o tempo todo. Então a respiração começa a mudar. Algumas vezes, ela é profunda e lenta, outras, superficial e mais rápida então, pouco a pouco, diminui e para, de uma maneira muito suave. Não há nenhum ataque súbito de dor no final. Nenhum sentimento de estar desaparecendo. Nenhum pânico. Tudo muito, muito tranqüilo

Nos 30 anos seguintes de sua prática clínica, a dra Kathryn Mannix descobriu como o relato daquele médico era verdadeiro e exato. “Eu o utilizei para confortar muitas centenas, talvez até milhares de pacientes da mesma forma que trouxe consolo para Sabine.

Mais do que nos familiarizar e tranqüilizar com o processo biológico do fim, as muitas histórias do livro nos remetem, através de casos diversos, comoventes e inspiradores, a compreender e refletir sobre nossa existência. “Em toda a nossa vida, há apenas dois dias com menos de 24 horas, posicionados como aparadores de livros na estante da nossa vida: um é celebrado todos os anos, mas é o outro que nos faz ver a vida como algo tão precioso” , afirma

Para quem quiser mergulhar nessa leitura tão intensa, repito aqui a advertência que a autora nos faz no início do livro: estas histórias provavelmente o levarão a pensar não apenas nos protagonistas, mas em si mesmo, na sua vida, nos seus entes queridos e nas suas perdas. É provável que se sinta triste, embora o objetivo seja o de oferecer informações e assunto para reflexão. “Como estive diante da morte milhares de vezes, concluí que, de maneira geral, há pouco a temer e muito a preparar. É surpreendente quanto uma família pode estar tranquila e bem preparada diante de um leito de morte.

Os enlutados sabem muito bem o significado e importância dessa serenidade no momento da partida de quem amamos.

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