Quando a despedida é um recomeço?
Por Aline Midlej para G1
Gabriel, Maria de Lourdes, Murilo, Maria Aparecida têm idades, caminhos e sonhos diferentes e estão nesta mesma frase por um luto compartilhado. As dores nascem da lama que ainda cobre Brumadinho e onde equipes de resgate têm trabalhado há mais de 250 dias em uma das maiores tragédias socioambientais do país.
Morreram 270 pessoas – e duas mulheres estavam grávidas. Passou-se um mês sem que uma vítima sem vida fosse retirada, até que o 250º corpo foi identificado nesta semana: Luciano de Almeida Rocha. Tinha 40 anos, três filhos e, em tese, não estaria lá naquela quinta-feira. Era o dia em que costumava visitar outra cidade próxima. Poucos dias depois, faria 20 anos de casado. Foi o dia em que ligou para a esposa, minutos antes do rompimento da barragem, e ela não atendeu.
Em comum, todos eles acharam que era mentira num primeiro momento. Mas o pesadelo era real. Em comum, também, o desejo de reparação e de uma despedida. O medo é do esquecimento.
Agradeço a todos que me atenderam no meio do seu luto. Peço licença às famílias, aos amigos, às centenas de voluntários que chegam a Brumadinho diariamente para falar desses números que chocam e nos afastam. E nos aproximam, novamente, quando o dia 25 de cada mês chega, e a tragédia se refresca na memória do país.
E eu volto ao Luciano, a vítima número 250. Nesta terça-feira, não era dia 25, e dona Maria Aparecida agradeceu por Deus ter guardado o filho dela ao longo de oito meses debaixo daquela terra e por devolvê-lo para a despedida com a família. A integridade do corpo conforta diante do incompreensível.
Outra Maria, a de Lourdes, saiu do IML com a irmã dentro de uma caixa. Apenas os pés de Daiana foram encontrados, ela tinha uma filha recém-nascida. O valor da integridade de um corpo diante da certeza da morte trágica, da revolta e da saudade. Sentimentos que são consolados pela matéria que, sim, dá significado e força para a despedida e, portanto, para o recomeço de muitos enlutados de Brumadinho.
Luto não tem padrão, nível, enredo e medida. E sempre nasce da perda. Luto é viver na ausência. Murilo Rocha, jornalista mineiro que está lançando um livro sobre as investigações do rompimento da barragem, escreveu alguns capítulos chorando: é um drama em que a gente não pensa, não consegue dimensionar, contou. Essa é a ausência, o luto de Murilo.
Na obra, Murilo também fala sobre o luto daqueles que convivem com a ausência de suas casas, de sua memória e o medo de novos “acidentes”. Não puderam se despedir da própria história. Não recomeçaram.
Gabriel recomeça todos os dias. Vive e revive lutos. A morte de uma prima e a perda de todos os moradores que buscam diariamente a Associação Amigos de Brumadinho, criada por ele e que já fez mais de 3 mil atendimentos. Oficinas de capacitação, palestras, atendimento psicológico e reconstrução de moradias constroem despedidas.
O cansaço testa o otimismo do jovem empresário que engordou 17 quilos desde então e não teve tempo de se despedir do que entedia de vida: “Todo mundo tem sua bolha social, seus círculos, sua vida é aquilo. Quebrou tudo o que eu imaginava. Eu não consigo sair disso, a gente se envolve. As pessoas encontram na gente um ponto de ajuda pra tudo, eu não posso parar”.
Duas investigações continuam em andamento. Vinte pessoas seguem desaparecidas. Sem despedidas, sem recomeços.
Luto é viver a ausência. Você vive algum luto? Já parou para olhar e sentir o luto do outro? Quem sabe, ali, não achamos nossa presença e um caminho para despedidas necessárias.