A dimensão do luto coletivo
Por Ana Elizabeth Diniz para Jornal O Tempo
Especialistas mostram como a morte de milhares de pessoas desconhecidas impacta a sociedade
A pandemia tem impactado a vida humana de várias formas, seja pelo isolamento social imposto, pela angústia do que virá amanhã, mas, sobretudo pelos milhões de vidas ceifadas. O que dizer das imagens de centenas de covas sendo abertas em São Paulo ou do comboio de caminhões em Bérgamo ou Milão, na Itália, levando pessoas que tiveram um fim de vida solitário, sem poder segurar a mão de um familiar, receber um afago, uma palavra? E a dor de quem fica sem a possibilidade do último adeus?
O mundo chora os mortos e se enluta. “Penso que o maior impacto dessas mortes é sobre o confronto com nossa finitude. A morte do outro, ainda que desconhecido, nos coloca em sofrimento pela empatia, valiosa capacidade humana de se colocar no lugar do outro. Mas, sobretudo, ela nos tira de nossa zona de conforto e nos obriga a refletir sobre a fragilidade humana”, analisa a psicanalista Eli Pasquareli.
Ela cita a frase de Guimarães Rosa, “viver é perigoso” para se referir ao contexto atual. “Só nos damos conta do que isso realmente significa quando situações como essa pandemia bate à nossa porta. Ela nos sacode, mas além do luto diante da dor e da morte pode ter um impacto positivo, pois tem o potencial de nos colocar em alerta sobre a qualidade de nossas vidas e de nossas relações, abrindo possibilidades de uma mudança profunda no nosso ‘modus vivendi’”.
A psicanalista acredita que a experiência da perda pode despertar nas pessoas mais cuidado consigo e com o outro. “Podemos sair do processo do luto, especialmente em relação à morte com um novo olhar sobre a vida. Uma disponibilidade maior para abraçar cada dia como uma dádiva e uma atitude de ‘carpe dien’”.
E o processo do luto passa por várias fases. “Se ele for bem feito, vai nos remeter à ancoragem em nós do conceito de que como seres finitos temos a responsabilidade de dar uma significação às nossas vidas. Isso, paradoxalmente, nos leva à busca para ultrapassar nossa finitude por meio de ações que deixam marcas e memórias para além da morte. Haverá o dia em que seremos ausência, mas no imaginário humano, o desejo de viver eternamente se realiza na famosa metáfora de plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho”, finaliza Eli.
A estrutura psíquica
Para Maria Bernadette Biaggi, psicanalista, monja da tradição Sotoshu de Zen Budismo e presidente do Istituto Biaggi: Psicoterapia Psicoanalisi Cultura e Arte Brasil Italia, “vida e morte são dimensões no mesmo espaço corpo, que existe desde o início de nossa vida como sede da nossa história. A construção do nosso eu corporal passa desde a perda do seio no desmame, da separação das fezes do nosso corpo, pelas angústias das limitações e pelas sensações de impotência diante das castrações necessárias para a nossa saúde mental e ingresso na vida social. É no trajeto da primeira infância que se constitui uma aprendizagem imunológica para as situações de desamparo inerentes ao existir”, diz.
O psicanalista e psiquiatra Sigmund Freud, diz Bernadette, faz uso do recurso metodológico conhecido como ‘princípio do cristal’, “a psique, como um cristal, ao revelar suas linhas de estrutura quando se quebra. O cristal é composto de fraturas que, no momento em que alguma circunstância o fizer ‘cair’, guiarão o modo como ele se partirá. Assim, a estrutura psíquica e os recursos internos de cada indivíduo também irão guiar sua visão da morte e sua capacidade de enfrentamento da dor da separação e do desamparo vivenciado nesse momento de reajuste da imagem corporal”
Para Freud, “é impossível imaginar a própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como expectadores. Por isso a escola psicanalítica pode aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê na sua própria morte, ou dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade”.
Segundo Bernadette, quando dizemos que estamos com medo da morte “podemos estar temendo algo como o abandono, a castração, vários conflitos não resolvidos, sentimentos de culpa. Vestimos a morte de nossas angústias, fantasias e experiências infantis e a capacidade de enfrentamento está relacionada a funções psíquicas básicas como, tolerância, frustração, dar e receber, perder, renunciar às ilusões narcísicas, aceitar a impermanência. Freud dizia que é preciso a gente perder o que efetivamente se perdeu fisicamente. A consciência da perda abre as possibilidades de elaboração do luto para que não se inverta em melancolia e para que possamos seguir com alegria e prazer”.
Luto sem despedida
Mais impactante que a perda é não poder se despedir do ente querido. “A despedida é nossa declaração de afeto a quem se foi e aos seus entes queridos. Os rituais de despedida são fundamentais para a elaboração de quem ficou. No velório, cada pessoa que comparece leva um fragmento que vai compondo o primeiro passo necessário à elaboração da ausência que passou a exigir um desinvestimento de energia afetiva. As emoções precisam estar vivas para que juntas possam auxiliar o processo de luto”, avalia Bernadette.
Durante os rituais de despedida, “fala-se sobre o passado, conta-se o dia anterior, as últimas conversas, as lembranças divertidas, alguém inesperado e ouve-se depoimentos carinhosos e de quem já perdeu. Esse espaço de contação de histórias e narrativas é uma elaboração coletiva e ajuda a construir a colcha de retalhos do que representou aquela pessoa na vida de todos e dos sentimentos no último dia da vida”, comenta a psicanalista.
Para ela, “as homenagens aquecem o coração dos enlutados, oferecem um sentimento de pertencimento e acolhimento e ajudam a construção de significados em relação à perda. É a pausa para se conectar com as emoções da separação e voltar para o interior de si mesmo. Antigamente os mortos saíam pela porta da frente da casa e eram reverenciados no cortejo. Essa despedida do corpo ajuda no processo de aceitação da morte. Ele faz parte do ritual do adeus, ponto de partida para a representação simbólica. O ritual do velório é a maneira de se compreender que de fato aquela pessoa se foi. Pular esse momento torna-se uma dupla dor e traz efeitos psíquicos ainda mais desafiadores”.
Durante a pandemia muitos familiares relatam não saber como seu ente querido enfrentou os últimos momentos de vida. “Não pude acariciar seu rosto pela última vez e vê-lo parecer digno”. “Familiares tentam passar mensagens, objetos com valor sentimental, desenhos e poemas na esperança que sejam enterrados ao lado de entes queridos, mas nada disso será posto no caixão. Como é escutar que seu familiar pediu a um profissional da saúde para se despedir por ele dos seus entes queridos?”, reflete Bernadette.
Na Itália pudemos acompanhar a campanha “O direito de dizer adeus”. “Não poder cuidar dos seus mortos porque os rituais de carinho são impedidos, pode deixar a sensação de quem amamos ter morrido em completa solidão. É muito difícil ultrapassar esse momento sem fechar a equação. É concluir sem o corpo algo definitivo. Velar é iluminar os últimos momentos e ajuda a concretizar a perda proporcionando momentos reflexivos, de internalização dos fatos e efetivação da finitude”, explica a psicanalista.
Ela conclui: “Sem dizer adeus fica o vácuo emocional. Passar pelo luto implica em um conjunto de ações psíquicas que terminam por introjetar no interior do eu aquilo e aquele que foi perdido. E, nesse primeiro momento, o corpo real oferece as condições necessárias para que o luto siga seu curso natural num trabalho de ‘con-formar’’.
Mais perguntas que respostas
Para a francesa Heloise Marie Irene Delavenne Garcia, médica psiquiatra, o legado das epidemias é muito real. “Doenças antigas, como a peste e a lepra ainda ancoram nossos medos e determinam o funcionamento de muitas coisas em nossas vidas. Muitos não sabem, mas todo o sistema hospitalar psiquiátrico francês foi herdado de ações para conter epidemias”, diz.
Na Idade Média, os hospitais construídos para os leprosos foram feitos em pedra. “Eles eram sólidos, com paredes altas e portais enclausurantes e foram erguidos em lugares afastados das cidades e em enormes áreas, a fim de assegurar a autonomia alimentar, pois tudo era plantado ali. Até hoje, as paredes continuam altas e os hospitais costumam funcionar como um lugar ilhado no território francês”, relembra Heloise.
A medicina medieval recomendava que as pessoas se protegessem da peste, “não com máscaras, mas usando um anel de ouro com uma pedra de diamante no dedo anular esquerdo. Essa receita foi tão eficaz que virou tradição presentear uma mulher com um anel de diamante, ato de proteção e amor”, comenta a psiquiatra.
Heloise observa que a pandemia do coronavírus deixa mais perguntas do que respostas. “Nosso cotidiano virou de cabeça para baixo, nossa liberdade foi aniquilada. Não podemos mais visitar nossos familiares, nem sair na rua, nossos filhos estão em casa, o comércio fechado. Para muitos, a atividade profissional está ameaçada ou aniquilada. O luto coletivo é uma realidade aqui em Minas Gerais e ele está além dos medos. Quero acreditar que depois disso a humanidade vai poder implementar mudanças duradoras e benéficas e criar mais tradições de amor, proteção e cuidado delicado”, espera a psiquiatra.
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