A vida é urgente, bora ficar perto

Por Cynthia Almeida para Site Vamos falar sobre o luto

Escrever para o irmão, morto muito jovem e de repente, é a forma da jornalista Dani Arrais mantê-lo perto na dor e nas conversas compartilhadas

Quando me encontram e não me falam dele, ele morre de novo”. É assim que a jornalista Dani Arrais, cujo irmão Leo faleceu há 5 meses, define o que sente quando encontra amigos que evitam tocar no assunto. Sabe que não é por mal, as pessoas acham que não mencionar a morte ou não tocar no nome de quem partiu é uma forma de preservar o enlutado da dor. Quem já perdeu alguém próximo sabe que é exatamente o contrário: a dor está lá e mesmo que as lembranças compartilhadas comovam e provoquem lágrimas, são elas que trazem de volta quem já não está aqui.

A morte repentina do irmão, o professor de filosofia e ativista de Direitos Urbanos, Leonardo Cisneiros, de enfarte,  aos 44 anos, pegou Dani num momento de plenitude de vida: ela acabara de ter, com a mulher Laura, o seu primeiro filho, Martin. Vida e morte entraram pela porta de forma avassaladora. Estão muito ligadas, essa grande alegria e enorme tristeza. Para lidar com o que chama de “jornada doida e doída do luto” Dani começou a escrever para o irmão. Escreveu no dia em que ele morreu. E um mês depois passou a escrever e publicar no Instagram com regularidade uma série que chamou de #cartasparaomeuirmão.

Nem sempre é fácil. “Às vezes me vejo tentando escapar do luto e silencio. E quando eu escrevo, eu volto pra mim. Eu me sinto perto dele. Escrever, e receber de volta as mensagens de pessoas tocadas pelo texto, tem sido a forma mais efetiva de lidar com o luto. É na escrita que eu encontro de volta”. Ela também fica extremamente grata quando recebe uma mensagem de alguém que conheceu o Leo e traz alguma lembrança feliz dele de repente. “É muito bom, me preenche tanto… escrever e falar dele é mantê-lo vivo na memória. Na minha e dos outros.”

Selecionamos aqui algumas dessas lindas cartas da Dani para o Leo.

#CARTASPARAOMEUIRMÃO

 

 

A VIDA É URGENTE

 

Hoje faz um mês – e ainda parece que a qualquer hora ele vai ligar e dizer “oxe, irmã, deixa de besteira, tô aqui”. No dia que meu irmão se foi, 4.195 pessoas morreram no Brasil só de Covid. Multipliquei minha dor por 4.195 e entendi no corpo o tamanho da terra arrasada. Meu coração se alarga em uma compaixão que jamais havia sentido. Agora já são mais de 410 mil mortos. Penso em tanta gente perdendo gente. Penso na família do Paulo Gustavo, essa família cuja existência fortalece a da minha. Quanta dor a gente aguenta até que alguma coisa mude?
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Um pensamento vem com a força de um mantra que repito na cabeça: a vida é urgente. Não vai dar mais pra esperar. Bora fazer tudo que a gente quer fazer, bora cuidar de quem a gente ama, bora se cuidar também. Tá todo mundo exausto, doído, sofrido, mas às vezes uma mensagem pode mudar o dia. Li hoje num post: “Sempre achamos que vamos ter mais tempo. E aí o tempo acaba”. Bora ficar perto, mesmo longe. Bora fazer tudo pra não nos arrependermos depois de tudo que poderia ter sido feito ou falado, sabe?
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Um dos meus consolos é que a gente se falava quase todos os dias, fazia chamada de vídeo, estava muito perto. Ah, como eu queria que tu me ligasse com Guido depois da soneca dele… Irmão, ontem Juliette foi campeã do BBB, tu ia ter achado massa. No discurso de vencedora, ela, que também perdeu uma irmã, falou: “Minha irmã, eu vou fazer você sorrir”. Me acabei de chorar – mas sei que ainda vou fazer você sorrir. O luto me define e me atravessa. Pra sempre eu vou ter perdido você. Sei que o tempo ajuda, sei que a gente aprende a colocar a dor em outra prateleira, mas hoje eu só queria você aqui.
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#escrevescreve #cartasparaomeuirmão

 

ÀS VEZES A GENTE SÓ QUER ESCAPAR DA DOR

 

Me vejo tentando escapar de qualquer pensamento sobre você. Tô parecendo quem eu temia: alguém que vai deixando a morte de lado, silenciando, deixando de falar (mesmo que faça poucos dias). Tem dias em que preciso dar conta de conseguir dar conta do dia. Cuidar do neném, trabalhar, ajeitar a casa, ver o Brasil indo por um caminho que me faz pensar: ainda bem que tu não tá aqui, porque ia sofrer demais. Fico estancando o choro, porque, quando uma lágrima brota, as demais jorram. Releio “O ano do pensamento mágico”, da Joan Didion, que começa assim: “A vida muda rapidamente. A vida muda no instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina”. Mas o corpo sabe de tanta coisa que hoje sonhei com você. Gosto de sonho porque nos dá algum tipo de presença, faz a gente se sentir perto, inclusive em algo banal. A gente se encontrava em Recife, eu reclamava que tu ainda não tinha arrumado as coisas pra gente sair, ou era pra viajar? Estávamos atrasados, e eu já tinha me tornado uma orgulhosa paulistana que chega na hora quando vai se divertir. Deu saudade até de brigar com você. Ainda me espanto com a brutalidade do nunca mais. Nunca mais nenhum gesto, nunca mais a presença, nunca mais uma conversa, nunca mais o colo. Esses dias eu fiz um movimento com o rosto que me lembrou você. Ainda bem que quem morre continua na gente, em um trejeito, no rosto de um filho. Deixar de existir leva tanta coisa junto. Tua cabeça, tuas ideias, tua voz, teus ouvidos. A coisa que mais me doeu olhar quando fui fazer faxina no teu apartamento foram as sandálias, que nunca mais vão te levar pra caminhar. Os estudos de aquarela também. Papéis riscados em busca da cor perfeita pra uma orquídea, me lembrando que tu estava vivo há tão pouco tempo. Quem vai embora deixa tanta coisa. As sandálias, as aquarelas, o celular, os livros, uma casa inteira. O que a gente faz com o que fica? O que a gente faz com a dor que fica? A gente cresce em torno dela, como me disse uma vez a @ju_faria? Espero que sim, mas espero não ter medo do tamanho dela. Talvez eu tente escapar porque ela é grande demais. Quando escrevo, ela vem. E você, também.
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#escrevescreve #cartasparaomeuirmão

 

MANTENHA SEUS MORTOS VIVOS

 

Nunca mais comemorar teu aniversário contigo. Nunca mais te ver vivendo coisas pela primeira vez, como levar teu filho pra começar na escola – e ele tava tão lindo, com uma mochila duas vezes maior que ele. Nunca mais te ver reclamar da data comercial dia dos pais e ainda assim ficar emocionado. Você só conseguiu fazer isso uma vez. Ninguém deveria morrer aos 44 anos. Leio livros sobre o luto, e os mortos tinham 88 ou mais de 90 anos. Sempre faço as contas do quanto você viveria a mais. Parece que a vida abreviada acrescenta uma camada de dor. Aliás, a dor só aumenta, já falei. E agora tô numas de não querer acessá-la. Dei um tempo na análise, a terapia do luto não passou de uma sessão. Fico muitas horas no celular, deliberadamente escolhendo não pensar nem olhar pra dentro. Me sinto muito só. Tem conversas que eu só queria ter com você, que não tá mais aqui, mas que eu não esqueço nem por um dia. Hoje mesmo teve Brasil e ROC no jogo de vôlei feminino. A Rússia não pode competir por conta de casos de doping, aí fez esse novo CNPJ de Comitê Olímpico Russo, como diz a galera do Twitter. No lugar do hino, Tchaikovsky, tu ia ter achado bonito. Não consigo ver foto tua, vídeo, então… Queria falar contigo disso tudo, mas a morte é feita de nunca mais. Ou também de quase nunca. Porque percebo que, pra evitar cutucar a dor, às vezes deixam de falar de você. Parece que é praxe no luto. A pessoa pensa: se eu perguntar, posso provocar choro e dor. Mas a real é que ambos já estão aqui, mais contidos uns dias, mais jorrados em outros. Ainda bem que sempre tem quem insista. Um dia uma amiga me escreveu: eu sempre lembro de vocês na data. Outra me disse: “Aniversário de Léo, né? Só podia ser leonino”. Tão bom. Me deu vontade de dizer pra quem convive com enlutados (e imagino que seja muita gente, já que a pandemia continua a todo vapor): cultive seus mortos. Mantenha-os vivos não só na memória e no coração, mas nas conversas e nas partilhas. Em vez do nunca mais a gente acessa o de vez em quando. E a memória, a tristeza e a saudade encontram algum amparo também. Feliz aniversário, irmão, pra sempre a gente vai te celebrar.
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#escrevescreve #cartasparaomeuirmão

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