Em romance fragmentado, editor Tiago Ferro narra luto após a morte da filha de 8 anos

Para O Globo

Por Ruan de Souza Gabriel

“O pai da menina morta’ traz entradas de diário, e-mails e mensagens de celular”

RIO — Quando a filha de 8 anos morreu, em 2016, o editor Tiago Ferro publicou no Facebook o horário do velório, pediu orações dos amigos e esclareceu que os testes de gripe aos quais a menina se submetera indicaram Influenza B e não H1N1. A morte de Manu foi notícia nos jornais, associando-a às outras 38 mortes por H1N1, outro tipo de gripe, ocorridas em São Paulo no início daquele ano. Um laudo concluiu que a causa mortis foi miocardite (inflamação no miocárdio que pode provocar parada cardíaca) decorrente de Influenza B, uma gripe mais agressiva. Ferro viveu um luto público. No processo, postava sobre a filha nas redes sociais, assinou um longo texto na revista “piauí” e escreveu o livro “O pai da menina morta” (Todavia, 176 páginas, R$ 44,90), que chega às livrarias este mês.

— Na época da morte da minha filha, desde o primeiro dia, e por iniciativa própria, eu também fui agente dessa exposição pública. À distância, aquela atitude parece fazer pouco sentido, mas acho que foi uma tentativa de assumir o controle, o sentido e a história da minha filha, para que nada fosse dito de forma equivocada — afirma Ferro em entrevista ao GLOBO. — O livro começou a ser escrito em um momento em que o luto foi encerrado, ou ao menos foi possível sair da fase mais aguda. É aquilo que segue faltando sempre.

O protagonista de “O pai da menina morta” nunca é nomeado. No decorrer das páginas, ele enfrenta a dor excruciante do luto e luta para encontrar alguma saída — na yoga, no sexo, na psicanálise, na rememoração incessante. A única personagem nomeada é Lina, a mãe da menina. Todos os outros personagens são chamados pelo narrador de “Minha Filha”, “Minha Outra Filha”, por suas funções, como “o médico”, ou por iniciais (“R.”, “T.”).

A narrativa de Tiago Ferro é fragmentada, uma combinação de entradas de um diário, listas, e-mails, mensagens de WhatsApp, diálogos e trechos que funcionam como pequenos contos protagonizados por pais famosos que perderam filhos, como Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Gil e Eric Clapton.

Apesar da inspiração autobiográfica e da licenciosidade formal, Ferro defende que seu livro é, sim, um romance.

— O romance foi bastante transformado pelas vanguardas do século XX e se mostrou extremamente plástico, capaz de incorporar outros gêneros, sem obrigação com o realismo e sem a pretensão de abarcar a totalidade — diz Ferro, que edita a revista “Peixe-elétrico”, especializada em ensaios literárias. — Entendo que o livro, através da forma fragmentada e com registros variados, catalisa algumas características da sociedade atual, como o esfacelamento dos discursos políticos e ideológicos e a aceleração do tempo nas redes sociais, sem deixar de narrar.

“O pai da menina morta” é narrado quase sempre no presente — nem mesmo as memórias habitam o passado. Quase não há conjunções que indiquem relação direta entre uma frase e a anterior. Elas seguem como versos — uma impressão aguçada pela linguagem poética e um pouco onírica do texto. Como num sonho — ou numa sessão de psicanálise — as imagens se sobrepõem sem muita ordem.

A confusão formal do romance parece emular o luto, dar forma literária a uma dor um tanto disforme, turbulenta, carente de sentido e não linear.

— O fragmentado, o caótico e o mal comportado da forma literária respondem não apenas ao luto como sofrimento, mas ao luto como vida transformada e em constante transformação — afirma Ferro. — No livro, o luto representa não só dor, mas uma lente, um filtro que recoloca a vida em outros termos.

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