O elixir da vida online: como a “imortalidade” digital está influenciando a maneira como lidamos com a morte?

Por CRP-PR

A morte de um ente querido é um momento de tristeza e dor. Aquelas últimas palavras não ditas, a mensagem de bom dia que não chega mais, o telefone que não toca. Mas, e se você pudesse continuar a conversar com algum parente ou amigo que já se foi? Parece ficção científica, mas a inteligência artificial já tornou esta comunicação possível.

Os engenheiros da Start Up “Luka”, fundada pela russa Eugenia Kuyda, conseguiram trazer um amigo dela, morto em um atropelamento aos 34 anos, ‘de volta à vida’ de maneira virtual. Utilizando fotos, documentos e mensagens trocadas por Roman Mazurenko, ainda em vida, em sistemas de redes neurais, foi possível identificar padrões e criar um algoritmo que possibilita manter conversas semelhantes às que eram tidas antes do falecimento, em 2015. O “avatar” de Roman responde como ele próprio responderia, por meio da tecnologia de inteligência artificial. O recurso dividiu opiniões dos familiares e amigos: uns viam no aplicativo uma maneira válida de matar as saudades do amigo; outros achavam que Eugenia havia ido longe demais e que a homenagem não era algo positivo.

Se atualmente a comunicação com estes “avatares” ainda está só começando – a criadora do aplicativo garante que este é o futuro da humanidade – outro recurso já torna as pessoas, pode-se dizer, imortais. Pelo menos na internet. O Facebook possui uma opção que transforma em memorial o perfil de alguém que já morreu. Assim, as informações daquela pessoa permanecem lá, como uma biografia. Os lugares que ela frequentava, as piadas que a fizeram rir, as fotos das viagens memoráveis…. Quem gerencia a conta é um herdeiro, que ainda pode alterar a foto de perfil e capa, responder às solicitações de amizade e fixar uma publicação no perfil.

 

A manutenção de um perfil ativo permite que amigos e conhecidos criem uma espécie de túmulo virtual, que visitam para deixar condolências, resgatar memórias e, de alguma forma, manterem os vínculos que antes eram mantidos nas visitas ao cemitério.

Só que todas essas mudanças afetam algo essencial para o ser humano: a necessidade de viver o luto. Segundo a Psicóloga Solange Maria Rosset (CRP-08/00204), o luto deve ser composto por quatro fases: chorar a dor, expressar a raiva, limpar a culpa e refazer projetos. Essas tecnologias que pretendem manter uma comunicação após a morte seriam ruins, na opinião da profissional, porque fazem com que as pessoas evitem lidar com a perda. “É como entrar em um mundo de ‘faz de conta’”, observa ela.

 

Já a Psicóloga Daniela Malta (CRP-08/IS 359), que se dedicou por vários anos ao estudo e atuação na área do luto, as tecnologias não precisam ser vistas necessariamente como vilãs no processo. “Eu vejo essas novidades como adaptações do luto que já vivíamos. Antes, guardávamos objetos, cartas, enfim, tudo aquilo que nos ligasse à pessoa querida que já se foi. Hoje, há uma transposição para o mundo virtual”, analisa Daniela.

Segundo explica o professor Nicolau Steibel, que ministra a disciplina de tanatologia na Universidade Tuiuti do Paraná, o luto e o pesar são experiências universais, mas cada cultura cria seus mecanismos para agir perante a morte. “Estes rituais, culturalmente determinados, são sempre passíveis de mudanças e oferecem às pessoas enlutadas, além de uma forma de ver e sentir a morte, um auxílio nos primeiros momentos após grandes perdas, quando elas costumam se encontrar num estado de choque e incredulidade”, diz. “Mesmo que os rituais mudem, eles vão continuar oferecendo aos enlutados uma maneira previsível de como agir num momento em que, de outra forma, eles se sentiriam ainda mais confusos e desamparados”, analisa o professor, acrescentando que a revisão dos conceitos em relação à morte tenderá a criar novos rituais que deem conta de sua finalidade.

Eu vejo essas novidades como adaptações do luto que já vivíamos. Antes, guardávamos objetos, cartas, enfim, tudo aquilo que nos ligasse à pessoa querida que já se foi. Hoje, há uma transposição para o mundo virtual

Daniela Malta, Psicóloga

O véu do luto precisa ser despido?

Antigamente, quando uma mulher ficava viúva, era comum que trocasse as roupas coloridas por vestidos e véus pretos, em sinal de luto pela morte do companheiro. Naqueles tempos, este era um sinal enviado para a sociedade de que aquela mulher era viúva, e ela seguiria com este comportamento para o resto da vida.

Hoje em dia, alguns especialistas defendem que o luto precisa ser vivido por um tempo determinado, além do qual se tornaria algo patológico. O professor Nicolau Steibel pontua, porém, que o pesar é uma experiência totalmente pessoal e, por isso mesmo, pesquisas recentes demonstram que não há um único padrão “normal” a ser seguido ou um tempo “normal” de recuperação. “Embora algumas pessoas consigam uma rápida recuperação depois do luto, algumas nunca o fazem”, afirma.

Já a Psicóloga Daniela Malta defende que é preciso analisar caso a caso. “Não vejo problemas se a pessoa utiliza estes recursos tecnológicos como forma de trabalhar seu luto, principalmente no primeiro ano, que é mais crítico. O que é preciso analisar, no caso a caso, é o prolongamento desse uso. Cabe ao profissional da Psicologia perceber quando já é hora de encerrar uma etapa e auxiliar o paciente neste processo”, diz.

Para ela, é fundamental que as(os) Psicólogas(os) estejam atentas(os) às mudanças que acontecem o tempo todo – o que vemos hoje é, provavelmente, apenas o início de uma revolução na forma como vivemos entre o real e o virtual. “Este é um tema novo para todos nós. Certamente precisamos desenvolver pesquisas e, acima de tudo, buscar conhecimentos para lidar com as demandas que já começam a surgir nos consultórios”, destaca.

 

Opinião diferente defende o tanatólogo Nicolau. “Com ou sem a nossa aprovação, estas mudanças são inevitáveis. Devido à criatividade dessas novas tecnologias, elas vieram para ficar e, cada vez mais, mudando os comportamentos e as formas de nos relacionarmos com os outros, assim como a forma de criarmos vínculos, tão necessários a uma saúde psíquica. Como podemos estar preparados para essas mudanças? Imagino que a única preocupação que podemos, e devemos preservar, é o nosso compromisso com a ética, com o nosso juramento enquanto profissionais da saúde mental. Qualquer outro tipo de “preparação”, imagino, é totalmente impossível, já que estas mudanças decorrentes das novas tecnologias são totalmente randômicas”.

Que rituais são importantes para você?

Os rituais são praticados pelos seres humanos desde as sociedades mais primitivas. Para as civilizações mais antigas, os ritos eram uma forma de lidar com situações difíceis, como a morte e a colheita (que dependia da natureza e fugia do controle).

Desde então, os rituais assumiram diversas características e funcionam, até hoje, como metáforas destinadas a reelaborar as interações rotineiras, segundo a Terapeuta Relacional Sistêmica Solange Rosset (CRP-08/00204). Por exemplo, ao participar de uma cerimônia de casamento, os noivos simbolicamente deixam de pertencer a uma família para formarem um novo núcleo.

No entanto, segundo Solange, o ritual só tem validade se faz sentido para a pessoa, ou seja, se tem a função metafórica estabelecida. Caso contrário, é apenas uma rotina, uma regra. “Não existe um certo ou errado para todo mundo. É preciso entender e administrar o que está acontecendo”, diz a Psicóloga.

Solange observa, ainda, que a mudança nos costumes tende a trazer uma alteração na forma como as sociedades lidam com os rituais. “Com o passar do tempo, os rituais se esvaziaram e perderam a metáfora. A vida moderna flexibilizou as regras. Hoje em dia, os rituais não possuem a mesma riqueza e as pessoas buscam nele uma magia, uma mudança rápida e sem aprendizagem, sem dor”, opina.

*Essa matéria foi publicada na Revista Contato 110.

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