Perdas Secundárias no Luto: o efeito “dominó” de perder um ente querido

Por Nazaré Jacobucci para Blog Perdas e Luto

 

“Doeria mais tarde, quem sabe, de maneira insensata e ilusória como doem as perdas para sempre perdidas, e, portanto, irremediáveis, transformadas em memórias iguais pequenos paraísos-perdidos” (Caio Fernando Abreu)

Você já viu milhares de dominós caindo? Alguém passa muitas horas montando uma fileira complexa de dominós com diversos obstáculos. Cada dominó é estrategicamente colocado perto o suficiente de outro para ser capaz de atingi-lo à medida que cai. No momento apropriado, o primeiro na sequência vira, e isso desencadeia uma reação em cadeia. O primeiro dominó cai sobre o segundo, e assim vai, um após o outro, até que todos tenham caído.

Você deve estar se perguntando: Nazaré o que uma carreira de dominós caindo tem a ver com o luto? Metaforicamente muito! De uma forma estranha, essa cena singular é semelhante a um processo de luto. Um ente querido morre, mas essa perda não é a única e muitas vezes, desencadeia uma reação em série. A morte de um familiar pode levar a muitas perdas subsequentes que ocorrem como resultado direto dessa perda. Quando alguém experimenta várias perdas associadas à perda primária, a pessoa enlutada diz: “sinto que estou perdendo tudo”. Perder um ente querido frequentemente leva as pessoas para uma crise existencial, uma vez que os sentimentos e emoções associados ao luto, entre muitas coisas, muitas vezes mudam a identidade, a percepção de mundo e senso de si mesmo.

A perda inicial, por exemplo, do marido, esposa, pai, filho, irmão, é frequentemente referida como perda primária, e as perdas que se seguem são identificadas como perdas secundárias. Essencialmente, as perdas secundárias não são de forma alguma menos extenuantes ou menos traumatizantes do que as perdas primárias. São os dominós subsequentes que caem como resultado da circunstância inicial. Quase sempre haverá perdas secundárias intimamente relacionadas com a primária, como perda de companheirismo, perda de renda e segurança financeira, perda de seu companheiro de viagem e perda de sua identidade no que se refere ao seu ente querido morto. Infelizmente, no entanto, como muitas pessoas enlutadas atestam, as perdas secundárias são muitas vezes negligenciadas na melhor das hipóteses e totalmente não reconhecidas na pior das hipóteses. Segundo Stroebe & Schut, “houve uma falta de reconhecimento da gama de estressores, da multiplicidade de perdas, integrante da experiência do luto. Não só existe a perda da pessoa, mas ajustes têm que serem feitos em relação a muitos outros aspectos da vida”.

Essas perdas são mais frequentemente experimentadas quando a pessoa volta à sua rotina cotidiana. Ela pode notar que agora está comendo fora sozinha, recebendo convites em seu nome sozinha, e mantendo a casa sozinha. Essas perdas concretas e subjetivas se acumulam em um tipo diferente de dor à medida que a pessoa vai assimilando a perda. No campo da saúde mental, as perdas que são chamadas de secundárias são uma parte normal do luto – elas podem se desdobrar ao longo do tempo ou se manifestar imediatamente após uma morte.

Identificar e reconhecer as perdas secundárias pode, muitas vezes, ser o primeiro passo para desatá-las. Então, quais são as perdas secundárias mais comuns?

Perdas relativas a relacionamento:

Perda da Estrutura Familiar: uma mudança radical pode ocorrer na família nuclear. A perda da pessoa pode trazer uma mudança nos papéis em casa. Há tarefas e responsabilidades que você poderá ter que assumir por causa da morte do seu familiar.

Perda do Modo de se relacionar com a Família e Amigos: uma mudança ocorre na relação com a família direta e/ou amigos de quem morreu. Ex.: a esposa perde o marido, pode haver um afastamento da família do marido e de seus amigos.

Perda de Sistemas de Suporte: perda de amigos, familiares, organizações comunitárias e outros que ajudam a sustentar e dar força diariamente. Dizemos que o luto tem uma maneira de mudar nossos livros de endereços. Os amigos têm sido solidários e prestativos, ou sua experiência foi decepcionante?

Perda de um Estilo de Vida Escolhido: ser forçado a começar um novo modo de vida, apesar dos desejos pessoais. Para os cônjuges sobreviventes, isso significa estar solteiro novamente e possivelmente sem filhos.

Perdas relativas ao Financeiro

Perda de Segurança Financeira: pode ocorrer uma grave perda financeira associada à morte. Em muitos casos, a pessoa que morreu era o provedor da família. Para outros, pode haver perda de emprego devido ao processo de luto ou dívida grave incorrida pelo ente morto ou como resultado da morte. Por isso, o estilo de vida teve que mudar devido as circunstâncias.

Demais Perdas…

Perda do Futuro: a cessação imediata dos planos feitos com o falecido. Esta é uma grande parte da jornada do luto para os sobreviventes de uma morte de jovens adultos.

Perda de Esperanças, Sonhos e Expectativas: esse é um tipo mais simbólico de perda. Muitas vezes, lutamos para chegar a um acordo com a perda de nossas esperanças e sonhos para o futuro, e nossas expectativas de como pensávamos que a vida seria. Isso é especialmente verdade quando um jovem morre. Os sobreviventes sofrem não apenas pela perda do presente com essa pessoa, mas também pelos objetivos e sonhos futuros. Embora não sejam perdas físicas, elas são, no entanto, reais e difíceis.

Perda de um Grande Pedaço de Si: perda da parte que a outra pessoa nos deu e representou na nossa vida, durante todos os anos de convivência, e que a morte parece ter violentamente arrancado de você. São aspectos intangíveis que o outro nos deu livremente.

Perda de Autoconfiança: a falha de um sobrevivente em reconhecer sua própria autoeficácia pessoal. É fácil cometer erros humanos nesta jornada desconhecida, especialmente nas primeiras semanas e meses em que nossa atenção é completamente tomada pela morte. Sua capacidade de funcionar como antes poderá ser afetada.

Perda da Capacidade de Fazer Escolhas: a sensação de que o sobrevivente não tem controle sobre sua vida, levando a uma incapacidade de aceitar que ainda existem alternativas, opções e preferências permitidas. Como a necessidade de um novo estilo de vida não foi uma escolha consciente, é mais difícil ver que as escolhas ainda permanecem.

Perda da Segurança: incapacidade de se sentir seguro. Saber que o mundo é um lugar inseguro e imprevisível pode levar a sentimentos de ansiedade e vulnerabilidade. A pessoa pode ser acompanhada pela incerteza do que esperar, do que acontecerá a seguir, ou como reagir ou responder.

Perda do Senso de Humor: a incapacidade em perceber algo como engraçado. Por causa da dor associada à perda de uma pessoa importante em nossa vida, podemos não sentir vontade de rir de nada. No rescaldo imediato da morte, nos perguntamos se ainda não há problema em encontrar humor em situações, felicidade em eventos e prazer na vida.

Perda de Capacidade de Foco: perda de concentração devido à preocupação com sentimentos de dor e tristeza. Muitos sobreviventes relatam que sua capacidade de se concentrar ficou prejudicada. Foco e funcionalidade completa podem ser difíceis de recuperar, especialmente se houve trauma envolvido. Sua habilidade de trabalhar foi afetada por essas circunstâncias? Quanto apoio ou compreensão você teve no local de trabalho?

Perda da Saúde: os problemas físicos decorrentes de estresse emocional, dor, trauma, choque e luto. Muitos sobreviventes enfrentam problemas de sono, problemas alimentares, problemas cardíacos, dores de cabeça, problemas estomacais, depressão, ansiedade ou tudo isso.

Para a maioria das pessoas, as perdas não ocorrerão de uma só vez. Pode ser um processo gradual de uma perda após a outra, assim como no dominó. Independentemente disso, é de vital importância que familiares e amigos reconheçam esse importante processo. Precisamos nos relacionar com a pessoa de forma adequada e ajudá-la a lidar com as perdas que foram experimentadas, que estão sendo experimentadas e/ou poderão ser experimentadas.

Como mencionamos acima, as perdas secundárias são muitas vezes muito pessoais, por  exemplo, perda da fé ou perda de autoestima. Experiências pessoais ou privadas raramente são reconhecidas abertamente, às vezes até mesmo pela pessoa que as vivencia. Além disso, as perdas secundárias geralmente são perdas não reconhecidas e/ou validadas por quem nos cerca, como perdas relacionadas à estabilidade financeira, senso de autoconfiança, senso de propósito e sistemas de apoio. Amigos, familiares, ou qualquer outra pessoa que sofre perdas secundárias estão propensos a pensar que essas experiências são apenas obstáculos a serem superados, em vez de perdas reais que precisam ser cuidadas e ressignificadas.

O que ajuda? Bem, o simples fato de reconhecer e distinguir a série de perdas secundárias que uma pessoa enlutada pode experenciar é um bom começo. Também ajuda saber que perda é perda – não importa o quão grande ou pequena – e a pessoa enlutada merece ter tempo e espaço para afligir-se por essas perdas. Além disso, se você sente que não está recebendo o que precisa de sua família e amigos, você pode querer tentar um grupo de apoio ou aconselhamento terapêutico. A única diretriz é encontrar uma maneira de cuidado que faça sentido para você e, em última análise, que forneça uma sensação de conforto.

Essencialmente, grande parte da dor de uma perda secundária vem do fato da perda não ser reconhecida como uma fonte legítima de dor. Muitas pessoas precisam de apoio para entender o complexo processo das perdas secundárias. O caminho para a recuperação envolve muitos aspectos, sendo um deles a compreensão de que a vida será diferente sem a presença das pessoas que uma vez a preencheram. Haverá vazios em muitos aspectos, que podem eventualmente ser preenchidos no futuro, mas com algo totalmente diferente.

Uma palavra final: leva tempo e paciência para atravessar um processo de luto. Espero que esta lista ajude todas as pessoas enlutadas, amigos e familiares a entender que não há substituto para o processo de luto. Esse processo nos ajuda a sobreviver a todos os tipos de perdas e desafios, para que possamos fazer os ajustes necessários às novas circunstâncias. A consciência das muitas perdas secundárias que podem acompanhar uma morte pode ajudar a pessoa em luto e aqueles ao seu redor a serem mais pacientes à medida que aprendem a navegar por um novo mundo, traçando um novo curso à medida que embarcam em sua jornada pioneira para sua vida futura.

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