Perguntas e respostas sobre o luto

Pesquisando sobre o luto, encontramos essa entrevista realizada por Luciana Saddi para o site Psi.Br e concluimos que com essa publicação poderíamos ajudar os nossos leitores.

“O luto é um estado psíquico extremamente doloroso, associado à morte e às perdas. Para se ter uma ideia da importância do luto e da morte na vida humana — nossa única certeza —, lembro que as urnas funerárias e os rituais de enterramento datam dos primórdios da humanidade e são anteriores ao tabu do incesto. Mas nossa sociedade não parece perceber que o trabalho de luto é necessário e importante, e se utiliza da negação para lidar com a dor. É como se não tivéssemos um passe livre para lamentar, para falar e até para enlouquecer antes de se refazer. Impossibilitados de expressar fortes sentimentos por motivos pessoais e sociais ingerimos, cada vez mais, medicações que visam conter a expressão da dor.

Para falarmos sobre o luto, convidei os psicanalistas Deodato AzambujaI e Leda HerrmannII .

Perguntas e respostas (?) sobre o luto:

  1. Como se dá o luto?
  2. Há diferentes formas de reação às perdas? Depende do vínculo que tínhamos com quem morreu?
  3. Parece que o luto virou tabu, ninguém mais pode ficar “mal” porque perdeu um ente querido. O que acontece com nossa sociedade?
  4. Muitos dizem que a dor ameniza com o tempo. Em minha experiência piora multo, até acalmar pode levar anos. Como você percebe isso?
  5. Há palavras para se dizer a alguém que enfrentou a morte de uma pessoa fundamental em sua vida?
  6. O que significa superar o luto?

 



Leda Herrmann

1. O luto é um trabalho que acompanha a elaboração de perdas. Trabalho de luto, considerava Freud. Perdas experimentamos quotidianamente, pois a vida humana implica relações com o outro e conosco mesmos. Se estou lendo um agradável romance, meu deleite vai durar até o fim da leitura. Acabado o livro, dele tenho que me separar, e o meu deleite só pode permanecer como lembrança. Terminada a leitura perco o livro e a relação de deleite que vivia. Isto é, a relação com o livro é abandonada e a elaboração dessa perda atira-me em outra relação, começo um outro livro para substituir o perdido, por exemplo. Um novo livro é uma forma de viver a nostalgia de não mais poder contar com a página seguinte do antigo. Convivemos com o luto enquanto convivemos com a vida. Nas perdas de relações mais significativas, como a morte de um ente querido, o trabalho de luto é mais intenso e penoso.

2. Claro que há, apesar de o ponto de partida dessa reação, ou da elaboração do luto, ser sempre a nostalgia do objeto perdido. Todo luto implica lidar com o vazio deixado pelo objeto perdido. Esse vazio nos remete à representação de nossa impossibilidade de uma satisfação autobastante, isto é, de não podemos ser o objeto total de nossa própria satisfação, o que se constitui também em um luto revivido a cada troca de objeto de relação.

A perda por morte implica reconhecermos a inevitabilidade do fim e contra isso lutamos, para não nos atentarmos à representação de nossa própria finitude. Quanto mais intenso for o vínculo emocional que nos ligava com quem morreu, mais dolorosa é essa passagem pela nostalgia do objeto perdido. Pode implicar uma negação da dor pela perda, negação que se atualiza em reações maníacas como atirar-se ao trabalho perseguindo situações de reconhecimento pessoal ou, em outro extremo, um abandono de si na perda, na identificação com o ser querido, levando a uma agudização da depressão em estados melancólicos, que nada mais são do que tentativas vãs de reviver quem já não mais existe. No entanto é imprescindível que se preserve um espaço para viver a dor da perda na elaboração do luto, espaço que no mundo em que vivemos está cada vez mais difícil de ser preservado.

3. Concordo com você. Ficar “mal”, seja porque motivo for, contraria a exigência de excelência de desempenho que nos é imposta pela sociedade ocidental – temos que ser eternamente jovens, bonitos e bem sucedidos. Essa exigência nos nega o direito à tristeza e leva de roldão o espaço necessário para viver a dor da perda. É mais fácil, e consentâneo com o padrão de êxito, beleza e juventude que impera, escutarmos de amigos que a vida continua, que devemos nos distrair, do que contarmos com sua disponibilidade para nos ouvir sobre nossa dor. Tabu é proibição. Parece que no mundo em que vivemos foi decretada à proibição ao luto pela perda de um ente querido.

4. Justamente pela perda do direito à tristeza com a consequente perda do espaço para viver a dor, há que se criar formas substitutivas de se lidar com as situações inevitáveis de luto, pois continuamos morrendo, apesar da promessa de eternidade que os out doors de propaganda espalhados pelas cidades nos prometem.

Crenças como essas, de que a dor ameniza com o tempo, generalizam-se, mas é preciso levar em conta que o tempo da amenização varia de acordo com a qualidade da perda e com a potencialização de dor que essa perda impõe.  Como você testemunha, algumas dores intensificam-se no período que sucede imediatamente à perda e têm que ser vividas assim. Não é o tempo o fator que conta para sua diminuição, mas o lento trabalho de elaboração do luto pela perda desse objeto tão importante na vida de relações de quem o perde.

5. Parece-me que muito mais que palavras, conta a possibilidade de compartilhar com amigos próximos cumplicidade e permissão para viver a dor da perda, sem a exigência de sua rápida diminuição. Quem enfrenta a morte de alguém fundamental em sua vida precisa encontrar no outro a permissão para que a nostalgia de perda aflore e o machuque. Sem sofrimento não é possível a elaboração do luto pela perda de um filho ou do companheiro de uma vida.

6. Permitir que a ausência imposta pela perda possa transformar-se em presença ausente, experimentada sem a dor dilacerante dos primeiros tempos.

 

Deodato Azambuja

Meu envolvimento com esse conjunto de perguntas muito interessantes, seis no total, me levaram – como costumo fazer na minha clínica ou como me inclino em direção a meus clientes – a pensar nas entrelinhas, no que está atravessando essas perguntas. E o que vejo que as atravessa são: o tempo, a vida e a morte. O que é o tempo, o que é a vida, o que é a morte? Estamos mergulhados no tempo, levados pelo tempo, pela vida e pela morte. Não existe manual de instrução nem para a vida, muito menos para a morte ou para o tempo. Inventamos Cronos, o tempo cronológico, o tempo linear ligado a experiência quantitativa com o tempo, mas, estamos mergulhados no Kairos, algo difícil de objetivar, que significa o tempo não linear, o momento justo, o instante oportuno. É como se o tempo fosse um cavalo encilhado passando a sua frente, Kairos diz respeito a experiência qualitativa com o tempo.

Digamos o seguinte: As perguntas tentam com toda razão encaminhar-nos para uma compreensão do tempo, da vida e da morte. Vejamos:

As duas primeiras perguntas poderiam se responder uma à outra. Ou melhor, para sermos objetivos a segunda pergunta responde à primeira. Já a terceira pergunta toca novamente a meu ver no conflito entre Cronos e Kairos e aprofunda desse modo a discussão sobre o tempo. A resposta a ela poderia ser: parece que na modernidade existe um grande avanço – a partir das ciências exatas, de seu enorme sucesso, não há como negar – da ideia de que o tempo linear, o Cronos, deve dominar tudo, inclusive as nossas almas. Vale dizer, a vida tem que seguir, nada de ficar choramingando, o tempo urge e ruge – uma fera está em seu encalço o tempo (linear) todo. É possível que isso seja mesmo um problema da modernidade onde “tudo que é sólido se desmancha no ar”. E anteriormente seria diferente?

Pensemos na quarta pergunta. A dor ameniza ou não com o tempo? Bem, aqui estou misturando os tempos, ou melhor, o público e o privado, a modernidade e como cada um vive a modernidade, ou como a modernidade lida com cada um. Mas, talvez eu tenha razão de fazer essa mistura, ou melhor, talvez isso seja um retrato, um selfie da modernidade. E os selfies infelizmente são limitados apesar de milhões de desejos em contrário. Se há palavras para se dizer para alguém em luto(?) Na verdade acho que as pessoas gostariam mais é de ouvir das pessoas em luto o que elas tem a dizer. Será que elas conseguiram desvendar os mistérios da vida, morte, tempo, mortalidade, imortalidade estando tão perto de quem evaporou concretamente, mas que ainda não evaporou e dificilmente vai evaporar da memória, que é o lugar para onde vão todos os mortos antes de desaparecerem para sempre, inclusive da memória!!!!??

Finalmente: o que é superar o luto? Por que devemos superar o luto? É o caso, é o melhor? Penso que aqui poderíamos passear por outro acontecimento da vida; a melancolia. Lado a lado com a melancolia, na base do psiquismo está o narcisismo. Agora sim! Interessante passear um pouco aqui pelo mito de Narciso; não todo o mito; apenas a ideia da ninfa Eco, que é descrita no mito, como totalmente siderada pela beleza de Narciso a ponto de transformar-se em pedra para poder apenas ecoar Narciso, metaforicamente ser apenas a sombra do outro. Ou seja, a sombra do objeto, ou do outro, no caso Narciso, cai sobre o Eu e o Eu desaparece; eu me desfaço de mim mesmo, perco qualquer autonomia, entro em depressão melancólica. Mas, será que isso decorre do luto e da perda do objeto ou já existia antes? Não será que o sujeito já tinha se despojado de quase tudo de si mesmo vivendo o tempo todo à sombra do outro, na ilusão de que desse modo não perderia jamais o outro?

Digamos, metaforicamente, que Eco se submeteu a Narciso, para ambos ser tornarem inconscientemente imortais, e através dessa espécie de mágica, se livrarem de qualquer angústia e desamparo, passaram a ser maravilhosos. De fato, a formação dos casais carrega muito dessa fantasia desde que ao se procriar, ou através dos filhos, se tornam potencialmente imortais. Claro que isso é uma fantasia narcísica, porque no real podemos, a qualquer momento, ser varridos da face da terra. Terremotos, tsunamis e pior, guerras que devastam nossos sonhos, ou mesmo a exploração do homem pelo homem de vários modos, inclusive as guerras entre os gêneros masculino e feminino, que segundo alguns é a base de todos os conflitos. A proteção narcísica possível, no sentido de sustentar certa autonomia do sujeito através da formação do casal, vê-se inteiramente impotente. Claro que aí, mais uma vez, a impotência se alia à onipotência do casal idealizado narcisicamente; é a repetição da enorme frustração divina com os malditos Adão e Eva. Que coisa, não?!



 

I Deodato Azambuja, Psiquiatra e Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, tem diversos artigos publicados em revistas especializadas e ocupou muitos cargos institucionais na SBPSP.

II Leda Herrmann, Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, presidente do Centro de Estudos da Teoria dos Campos e autora de Andaimes do Real: A Construção de um Pensamento, Casa do Psicólogo, 2007.

* Luciana Saddi, Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP), mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e autora dos livros de ficção O amor leva a um liquidificador (Ed. Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Ed. Jaboticaba).

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