Quem perde o marido é viúva, quem perde os pais é orfão. E quem perde um filho é o quê?

Por Rita Lisauskas para o Site Emais

Psicóloga promove grupo de acolhimento para pais que perderam seus bebês

 

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A notícia da chegada de um bebê na família geralmente é comemorada de forma alegre e ruidosa. Não faltam parabéns, presentes e comemorações: há de chá de bebê, chá de fraldas e agora até ‘chá revelação’ para celebrar essa criança que em breve chega ao mundo. Mas muitas vezes a vida vem e nos dá uma rasteira – e o bebê tão sonhado parte antes mesmo de nascer. Ou nasce, fica um pouco com a gente e vai embora. O que fazer com essa dor, esse vazio? Ao contrário de todas as outras perdas – de um pai, de uma mãe, dos avós – a dor de uma gestação que se interrompe muitas vezes não encontra espaço social para ser sentida. “Eu não entendo porque você chora tanto, era só um combinado de células”, ouviu a psicóloga recém-formada Damiana Angrimani de sua própria terapeuta, depois de perder um bebê no início da gravidez. Ao ter sua dor desacreditada e receber pouco acolhimento de praticamente todos os profissionais da saúde pelos quais passou, a psicóloga decidiu se especializar e trabalhar com luto gestacional e perinatal. “É um luto que não tem permissão de existência na sociedade”, afirma. “Quando você perde o marido, se fica viúva. Quando se perde os pais, se fica órfão. E quando você perde o filho? Isso não tem nome.” Damiana Angrimani, 36, conduz um grupo terapêutico gratuito em São Paulo e conversou com o blog.

Blog: Como nasceu em você o desejo de ajudar pais que perdem seus filhos?

Damiana: Sempre foi uma vontade minha fazer um grupo como esse. Eu comecei a trabalhar com perinatalidade há sete anos, quando eu perdi meu primeiro bebê. Eu não tive apoio de nenhum profissional de saúde, eu chorava muito, sofri para caramba. Quando eu cheguei no hospital com sangramento logo começou aquele questionamento como se eu tivesse provocado um aborto, fui tratada com muito julgamento. Daí eu fiquei pensando em todas as mulheres que passam por isso e eu decidi mudar meu foco de atuação como psicóloga, decidi trabalhar com luto.

Blog: Você se importa de contar um pouco mais sobre a sua perda?

Damiana: A gente descobriu a gestação com seis semanas, contamos para todo mundo e foi aquela festa, porque a gente estava planejando engravidar. Fomos viajar durante um mês e, quando voltamos, estava na época de fazer o primeiro ultrassom e eu estaria, segundo as minhas contas, de 13 semanas. Só que o ultrassom mostrou que não havia batimentos cardíacos no bebê. Uma moça veio entregar o resultado do exame e nos disse “parabéns!”, eu acho que ela falava parabéns para todo mundo. Aí a gente já ficou super mal e meu marido falou: “como assim parabéns, a gente perdeu o bebê!” e a moça ficou super sem graça. Mas isso foi só o começo.

Só consegui uma consulta com o médico dias depois do exame e ouvi simplesmente que o que aconteceu comigo “acontecia com 25% das mulheres.” Só. O médico me passou um remédio para induzir as contrações para eu expulsar o embrião, o que só aconteceu muito tempo depois. E quando eu fui pro hospital começaram as perguntas “Mas o que você fez? Você tomou alguma coisa?” O processo foi demorado e eu ouvi que “tinha que esperar”.  Passou um mês, dois, liguei pro laboratório para marcar uma ultrassonografia e expliquei meu caso, “olha, eu preciso fazer o exame porque eu perdi um bebê e preciso ver se é preciso fazer curetagem” e ouvi da moça no telefone: “ah, mas você não está gestante? E como eu coloco no sistema? Eu não sei como proceder!” – nesse dia eu chorei mais um monte e finalmente encontrei uma médica e disse a ela que não aguentava mais ter que contar a mesma história para todo mundo. E aí finalmente a curetagem foi marcada para agosto – sendo que eu já sabia que o bebê não tinha batimentos cardíacos desde maio. Quando cheguei ao hospital fui internada na mesma área do berçário, tinha uma mulher do meu lado com um bebê recém-nascido. Isso mexeu demais comigo. Eu levei essa dor toda para a minha terapeuta, uma pessoa que eu respeitava muito. Aí ela me disse “eu não entendo porque você chora tanto, era só um combinado de células, não era um bebê”. Eu saí do consultório em choque, e eu pensei não é possível, deve ter uma outra forma de lidar com isso, não pode ser apenas desse jeito.

Blog: Então foi um somatório de coisas que te levou a estudar o assunto e querer ajudar mulheres que sofrem uma perda como a sua?

Damiana: Exatamente. Eu entrei em contato com uma professora da faculdade que tinha tido um parto humanizado e ela me indicou alguns grupos, eu comecei a conversar com algumas mulheres e me senti acolhida. Aí comecei a estudar a perinatalidade, algo que eu não tinha aprendido na faculdade. Lá a gente aprendia sobre a gestação e sobre o nascimento do bebê e só, acabou, a partir daí a gente estuda o desenvolvimento da criança, essa mulher não existe.

Blog: A psicologia ignorava a mulher nesse cenário e ainda mais as que sofriam a perda de um bebê?

Damiana: Isso. E sabe o que eu percebia? Que existiam inúmeros grupos de gestantes, grupos de pós-parto. E grupos de mulheres que perdiam seus bebês? Isso não tinha. E desde que eu me especializei começaram a me encaminhar muitos casos de perdas gestacionais e perdas perinatais, comecei a atender algumas mulheres nos hospitais e comecei a perceber que acontecia com elas o mesmo o que aconteceu comigo. Elas perdiam seus bebês e ficavam internadas na mesma ala da maternidade – os hospitais até têm um protocolo para atender de forma diferente, mas na prática não é o que acontece. Um casal me contou que perdeu o bebê no início da noite e no dia seguinte de manhã ligaram no quarto para saber se a mãe precisava de ajuda na amamentação. E na hora que eu estava atendendo os dois entrou uma enfermeira no quarto com a mala de maternidade, oferecendo lencinho umedecido para limpar o bebê.

Blog: E como começou o atendimento em grupo?

Damiana: Eu assumi no começo desse ano um grupo que já existia na Lumos e as reuniões são uma vez por mês, sempre na última quarta-feira. O grupo de perdas gestacionais e perinatais é gratuito, é só chegar. Há muitas mulheres que vão sozinhas, mas há também as que vão com os companheiros, o que é outra questão, o luto do homem também é muito complicado.

Blog: Se mal há espaço para as mulheres falarem sobre o assunto, imagina para os homens.

Damiana: Exatamente. E no caso deles, ninguém sequer pergunta como eles estão se sentindo é sempre “e aí, como é que ELA está?” Ou então “você tem que ser forte, tem que ser forte por ELA!” Eles não têm permissão para viver esse luto, o que também é bem complicado.

Blog: E geralmente o casal, ou a mulher, vão uma vez à reunião do grupo, ou mais que uma vez?

Damiana: Varia. Tem grupo onde eles vão apenas uma vez, tem que grupo que a gente os acompanha por mais tempo. Como é um gratuito e aberto, você pode ir uma vez e não voltar nunca mais se não quiser, ou voltar sempre.  Em média eu recebo de quatro a seis pessoas nas reuniões, não é comum a gente falar sobre a morte na nossa sociedade, ainda mais sobre a morte de bebês. É um grupo que cresce devagar por causa disso.

Blog: E como é que você conduz o trabalho com eles? Você está lá para falar, para ouvir?

Damiana: Eu gosto muito de deixar aberto para que eles falem, porque esse espaço de fala não existe fora de lá.  Geralmente as pessoas sugerem “deixa para lá”, “não fica pensando nisso”, “foi melhor assim”, “vai dar tudo certo!” Por isso eu deixo que eles falem o que quiserem, nunca chego com um tema pronto. E o interessante é que a história deles se conversam. E eu dou o acolhimento.

Blog: Obviamente cada caso é um caso, cada perda é uma perda. Mas o que você vê em comum na fala dessas mulheres?

Damiana: Normalmente elas têm aquele questionamento de “por que isso aconteceu comigo?” ou comentam que veem um monte de gente que nem quer ter filhos e tem enquanto ela que deseja muito passa por isso. Também se questionam por que perderam esse bebê se antes estava tudo bem, se perguntam o quê fizeram de errado. Às vezes as mulheres sentem muita culpa ou então se sentem de alguma forma incapazes e não se sentem à vontade para falar disso, não têm uma permissão social para isso. Existe ainda uma sensação de vazio, porque esse é um luto que não tem corpo. Quando a sua avó morre, você lembra da macarronada que ela fazia, do aniversário de 90 anos. Mas quando é um neném ele não tem “história”. Muitas dizem “eu tenho medo de esquecer meu filho”. E quando é uma perda gestacional se tem ainda menos espaço social para esse luto, porque as pessoas dizem “ah, mas esse bebê nem nasceu!” E quando nasce, ela ouve “nossa, ainda bem que morreu agora, já pensou se morresse quando tivesse seis anos, imagina?” É um lugar que não existe, pensa: quando você perde o marido, se fica viúva. Quando se perde os pais, se fica órfão. E quando você perde o filho? Isso não tem nome. É um luto que não tem permissão de existência na sociedade.

Blog: Então é uma dor ainda mais doída.

Damiana: Sim, porque é uma dor que não se nomeia, não tem como nomear. Tem uma paciente minha que perdeu as gêmeas agora no mês de dezembro e ela me contou que foi numa festa de família – ela tem um filho mais velho – e contou para os parentes que o filho sempre fala das irmãzinhas. E aí a mãe dela disse: “Ai, que coisa mórbida, para de falar disso!”

Blog: É uma dor que não pode nem doer, né?

Damiana: E ela respondeu à mãe “essa é minha história”, mas ouviu “nossa, mas não precisa ficar pensando nisso, você vai ficar vivendo isso até quando?”

Blog: E os homens? Como passam por isso?

Damiana: Eu estava atendendo um paciente que também perdeu um bebê e ele estava falando que a mulher dele tem quatro meses de licença para lidar com a dor e ele apenas cinco dias, porque a licença maternidade e paternidade é a mesma se o bebê nasceu vivo ou não. Ele me disse “eu também perdi a minha filha e é uma dor que eu tenho que superar em apenas cinco dias para voltar ao trabalho.”

Blog: A licença paternidade é curta para se conectar com o bebê que nasceu e também curta para tentar se curar do bebê que perdeu.

Damiana: Sim. E para o homem é ainda pior porque ele ouve que tem que ficar forte para ajudar a mulher dele. “Você não pode cair!” Tem essa cobrança para eles, o que é ainda mais desorganizador.

Blog: Claro que não existe uma receita para isso, mas como se lida com essa perda do ponto de vista terapêutico?

Damiana: Socialmente a gente tem uma tendência a acelerar processos e com o luto não é diferente, sempre se pergunta quanto tempo se demora para ficar bem. E tem outro lado, às vezes a pessoa fica bem e, sei lá, posta alguma coisa no Instagram e ouve “nossa, que bom que você já está bem!” e vem a culpa “será que eu não devia estar bem?” Esse tempo de luto é bem estranho e, na terapia, eu dou a oportunidade de cada um viver seu luto dentro da suas possibilidades e necessidades, não tem um norteador para o luto, um “agora você já deveria estar bem”. E não é um processo linear e geralmente o primeiro ano do luto é a época de trabalhar todas as datas – o primeiro mês, primeiro Natal, a primeira Páscoa – então a gente nem considera que isso “vá passar” antes de um ano. E aí tem que haver essa permissão para entender que talvez nunca passe, talvez essa criança seja lembrada para sempre, mas você vai continuar vivendo a vida e se movimentar para outras coisas.

Blog: O senso comum diz que essa dor costuma passar quando se engravida de novo. Isso é verdade ou isso é cruel, inclusive com uma criança que possa vir depois de uma perda?

Damiana: Eu não acho que uma criança substitua outra, sinceramente – são histórias diferentes, são crianças diferentes e não substitui, não é a mesma coisa, não é o mesmo bebê. E existe aquela expressão que muita gente usa de “bebê arco-íris” (para se referir ao bebê que nasceu depois de uma perda): eu acho que cada um tem que usar o que for necessário para se acalentar, mas também é um peso para o bebê arco-íris, né, “putz, eu existo porque meu irmão morreu”. Mas essas são maneiras que as pessoas encontram para nomear o inominável então eu acho que é válido, o que ajuda no processo de luto é sempre válido.

Blog: Quem teve a sorte de não passar por isso mas convive com alguém que passou ou está passando. O que não fazer? O que não falar?

Damiana: Em primeiro lugar a gente tem que estar disposto a ouvir e se colocar para isso, porque às vezes a gente não sabe mesmo como lidar. Dizer “olha, eu nunca passei por isso, eu não sei o que fazer, mas se eu puder te ajudar eu quero te ajudar. Eu te ajudo de alguma forma?”, entregando para a pessoa o direcionamento para isso, não chegar com respostas prontas é uma boa abordagem. E não vir com aquelas frases tipo “Deus sabe o que faz”, “foi melhor assim” ou então dizer que “Deus tem um propósito, tem que ter fé” – e eu sei que as pessoas não fazem por mal, mas fica uma coisa pesada, né, “poxa, então eu que estou sofrendo não tenho fé?” Não adianta ouvir que é só ter fé, é só acreditar, porque não é assim. Cada processo de luto é um processo, cada pessoa é uma pessoa e quando a gente entende isso a gente se abre para ouvir o outro.

Para saber mais sobre essa publicação e o grupo de apoio, clique no link abaixo.

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