Sobre amor, morte e o que podemos aprender na literatura
Por Cynthia Almeida para Site Vamos Falar sobre o Luto
O escritor espanhol Javier Marías nos oferece reflexões impactantes sobre o tempo, memórias e a forma como achamos que a morte de alguém importa mais aos vivos do que aos falecidos
O livro Os Enamoramentos, do escritor espanhol Javier Marías enlaça vida, amor e morte de forma tão intensa que faz com que, apesar de ter como pano de fundo um assassinato e seus desdobramentos, nos demoremos na leitura para saborear as muitas reflexões em torno do tema do luto. Algumas delas me inspiraram a escrever a coluna desta semana no UOL . Na coluna, eu me ative à questão do tempo do luto, com a preciosa ajuda da psicoterapeuta Maria Helena Franco. Mas Marías aborda tantos outros aspectos relativos à perda de um grande amor e a perspectiva de uma nova vida sem ele, que gostaria de compartilhar aqui alguns desses pensamentos (além, é claro, de sugerir fortemente a leitura do livro).
Uma das situações narradas na história é a da obsessão da viúva com os instantes finais da vida do marido. Apaixonada e inconformada com sua morte, ela se agarrava ou, mais precisamente, sua mente se paralisava em seus últimos instantes: o que teria ele sentido, pensado, compreendido. Em comparação a tantos momentos vividos juntos, tantas memórias a serem visitadas com dor ou alegria, essa voragem de permanecermos presos aos últimos segundos de uma vida me fez pensar que tendemos a abraçá-los – esses segundos finais – como um derradeiro recurso de usufruirmos da vida que se foi. Veja o que o autor escreveu a respeito:
“Até certo ponto era como se sua morte anômala houvesse obscurecido ou apagado todo o resto, às vezes acontece: o fim de alguém é tão inesperado ou tão doloroso, tão espetacular ou tão prematuro ou tão trágico — em certas ocasiões, tão pitoresco ou ridículo, ou tão sinistro —, que é impossível referir-se a essa pessoa sem que imediatamente esse fim a engula ou contamine, sem que sua aparatosa forma de morrer manche toda a sua existência prévia e de certo modo a prive dela, coisa das mais injustas. A morte espetaculosa se faz tão predominante no conjunto da figura que a sofreu, que custa muito recordá-la sem que na mesma hora paire sobre a recordação esse dado anulador último”.
A partir desse olhar, fica mais fácil entender porque alguns tipos de lutos são pautados pela “forma com que morreu o ser amado”. O efeito final é o mesmo, a irreversibilidade, mas a maneira de sentir e entender a morte varia de acordo com as circunstâncias.
Os Enamoramentos traz outra passagem muito verdadeira (impossível um enlutado não se identificar) sobre a pressa da sociedade para nos tirar do estado de tristeza profunda. Mesmo quem, por infortúnio, experimenta uma perda violenta e inesperada, sem sentido ou explicação, logo perderá seu direito ao estado de devastação interior. Por pura falta de paciência de quem vê a dor do lado de fora.
“É outro dos inconvenientes de sofrer uma desgraça: para quem a sofre, os efeitos duram muito mais do que dura a paciência dos que se mostram dispostos a escutá-lo e acompanhá-lo, a incondicionalidade nunca é muito longa se tingida de monotonia. E assim, mais dia menos dia, a pessoa triste fica sozinha quando ainda não terminou seu luto ou já não lhe consentem falar mais do que ainda é seu único mundo, porque esse mundo de angústia resulta insuportável e afugenta. Ela se dá conta de que para os outros qualquer desgraça tem data de caducidade social, de que ninguém é feito para a contemplação do pesar, de que esse espetáculo só é tolerável durante uma breve temporada, enquanto nele ainda há comoção e padecimento e certa possibilidade de protagonismo para os que olham e assistem, que se sentem imprescindíveis, salvadores, úteis.”
O livro também aborda as questões mais objetivas a respeito da vida depois de uma tragédia e discute as particularidades do luto de quem é mais ou menos “vocacionado ao sofrimento”. Sem julgar quem se demora na tristeza (é fundamental que a gente lembre sempre que não tem tempo certo ou errado), Marías escreve sobre seu personagem como alguém claramente incompatível com o estado de sofrimento prolongado: Sim, há quem suporte a desgraça. Não por serem frívolos nem cabeças ocas. Padecem-na quando ela os atinge, claro, certamente como os demais. Porém estão destinados a se livrar logo dela sem precisar se esforçar muito, por uma espécie de incompatibilidade. Está em sua natureza ser leves e risonhos e não vêem vestígio no sofrimento, ao contrário da maior parte da pesada humanidade, e nossa natureza sempre acaba nos pegando, porque quase nada a pode alterar nem quebrar.”
Outra abordagem que me fez pensar em como experimentamos o luto foi a lembrança, um tanto incômoda, de que tendemos a pensar que a morte de alguém muito próximo e querido é algo que aconteceu mais conosco do que com o próprio falecido. Tendemos a enxergar mais a dor de quem fica (seja a nossa ou a do outro) e sentir empatia pela falta que deverá suportar, como irá refazer sua vida, etc. O autor resume esse sentimento polêmico com o trecho a seguir: “O mundo é tão dos vivos, e tão pouco na verdade dos mortos — embora todos eles permaneçam na terra e sem dúvida sejam muitos mais —, que aqueles tendem a pensar que a morte de alguém querido é algo que aconteceu mais com eles do que com o falecido, que na verdade foi quem a sofreu.
Os Enamoramentos (Javier Marías, Companhia das Letras, 2011) vale pelas discussões filosóficas em torno do luto, mas também é imperdível no desenvolvimento da trama de tirar o fôlego com todas as camadas possíveis ( e surpreendentes) de uma história de amor. E, claro, a presença dos mortos em torno dela.
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